quarta-feira, 30 de junho de 2010



PHOTOGRAPH FROM SEPTEMBER 11





They jumped from the burning floors –

one, two, a few more,

higher, lower.



The photograph halted them in life,

and now keeps them

above the earth toward the earth.



Each is still complete,

with a particular face

and blood well-hidden.



There’s enough time

for hair to come loose

for keys and coins

to fall from pockets.



They’re still within the air’s reach,

in the compass of places

that have just now opened.



I can do only two things for them –

describe this flight

and not add a last line.





Por Wislawa Szymborska
Tradução para o inglês de Stanislaw Baranczak e Clare Cavanagh
Arte Edvard Munch






Na tua boca cantou subitamente uma voz.

E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,

o rio que outrora bordava o campo emudeceu

com as suas pedras lisas. Então foi possível



ouvir o vento soprar nas asas das borboletas

e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros

e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.



Sobre uma colina quente passou uma nuvem

e uma ave poisou, perplexa, no fio do horizonte –

por um instante, o dia mostrou as suas pálpebras tristes;



e, na brancura cega desse entardecer, a tua mão

escorregou pala inclinação do sol e veio contar

as sombras do meu decote.



São assim as mais pequenas histórias do mundo.





Por Maria do Rosário Pedreira
Fotografia de Robert Parkeharrison

terça-feira, 29 de junho de 2010



FÁCIL





Desligar o telefone

Aumentar a TV

Fechar a porta

Apagar a luz

É simples

Levantar e sair

Fechar os olhos

Pegar o carro

Furar o sinal

Automático

Aconselhar

Oferecer dinheiro

Ouvir sem atenção

Fácil

Fazer planos

Viajar nas férias

Fotografar estranhos

Sorrir ao lado deles

Publicar na Internet

Simples

Criar uma ONG

Salvar o planeta

Protestar

Acreditar em Deus, claro

Pagar os impostos

Aceitar os desmandos

Votar

Fugir da culpa

Tranqüilo

Mergulhar

Manter-se raso

Esconder a dor

Bem fundo

É fácil, se aprende

Ir ao analista

Folhear uma revista

Cortar o cabelo

Fazer compras

Reclamar do trânsito

Trocar o carro

Pintar o apartamento

Ter filhos

Ler as notícias

Num clique

Comprar a prazo

Com o cartão de crédito

Descomplicado

Tomar comprimidos

Ficar em Forma

Perder uns quilos

Fugir do tempo

É fácil

Mais fácil ainda sair do sério

Perder a calma

Comprar uma arma

Ferir alguém

Enlouquecer

Não é difícil

Olhar as horas

Prever o tempo

Viajar no espaço

Ficar famoso

Rápido e fácil

Dar entrevistas

Comprar drogas

Morrer sozinho

Acontece

É comum

Esconder a verdade

Desviar dinheiro

Usar a força

Trepar

Facinho

Negar afecto

Comprar respeito

Olhar de longe

Assistir a um filme

Aumentar o som

Calar-se

É fácil

E eu acho que eu sou mesmo difícil.





Por Marcio Nicolau

segunda-feira, 28 de junho de 2010







Que o Teu gládio me fira mortalmente.

Eu sou de alma dispersa e vagabunda,

Tudo me destrói e cada ser me inunda

E posso assim rolar eternamente





Por Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 27 de junho de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 7


(Dorothea Lange. Herald Square, Nova Iorque. 1952)





A roupa é pobre



o cabelo segura-o com o gancho

com que todos os dias prende os sonhos



o olhar atravessa

a rua como se atravessasse um rio



esse olhar não se vê

mas encerra nele uma distância profunda.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

terça-feira, 22 de junho de 2010



CONSTELAÇÃO VEGA





E tinhas o brilho duma estrela gravado pelo peito

como se fosse uma tua tatuagem de luz

era um olho amarelo que te brilhava no peito

no sítio onde o esterno é metade

Isso era a sapiência do teu tórax todo feito luz

era precisamente a sapiência dos teus pulmões

a explorarem fogo por fora do peito

e tinhas o brilho da constelação de Vega

gravado pelo peito todo

feito por que mulher não sei e não sei em que praia

porque é na praia que as tatuagens se iluminam ainda mais

ao brilho do iodo que do Sol desce

e cobre as pestanas do peito que são os cabelos

Tinhas uma estrela de luz gravada no meio do esterno

reconheço-te a pousada da mesma o sítio onde ela se põe

e o teu peito era a gruta

Se imagino um presépio abre-se-te a cova da garganta

que da garganta te vai

até onde o dito começa

e onde o fluxo da luz da dita inundaria depois

a dimensão do teu presépio

a dimensão do teu presépio virado para o Norte

ao confronto da Estrela Polar

que de noite viria escrever pela sua própria mão

o nome dela por cima dos bicos da tua.

Fusão da fusão, cíproco do recíproco

a tua que de estrela seria depois polar

nos indicaria depois o caminho dos celtas

o caminho do Norte e da Inglaterra de Ricardo

e então uma cruzada nasceria na imaginação do teu peito

uma cruzada para pôr em bico de guerra

a glava do princípio do teu esterno.

Se imagino a recuperação do túmulo

nasce-te um milagre

no sítio da tábua do dito

há uma aparição no sítio da mesma tábua.

Lázaro vem nu

se traz a Bíblia na mão é o começo dos evangelhos

vê-se João no sítio do horizonte

onde o Sol põe cobre por cima da cabeça do apóstolo

nasce a Bíblia na mão do Sol

e então o astro ensina à galáxia

o sentido que o homem tem.

Tem um galo nas costas e não vê

Adão que não acorda ao sentido do corpo da cobra.





Por António Gancho
Música e interpretação de Joy Division

domingo, 20 de junho de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 6


(Helen Levitt. Nova Iorque. 1982)





São dois tempos que se encontram



ela debruça-se sobre a janela de um táxi

onde se senta mas não se vê o país

esquecido do motorista



a sua roupa

o chapéu o casaco a saia

conserva todos os anos desde que

há muito se perdeu da sua passagem



traz na mão um grande embrulho

atado em cordel

onde guarda todos os anos que não quis

contar para a frente.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

sábado, 19 de junho de 2010



A BELA DE YU





Quando era novo, ouvia a chuva

Acompanhado por bailarinas,

As velas tremulando, no vermelho

Das cortinas de cama.

Depois, ouvia nos barcos errantes,

Nos imensos rios, sob nuvens baixas,

No vento de Oeste – lá onde

Grita o ganso selvagem.



Ouço-a agora junto à cabana dos monges,

Com prata nos cabelos,

Tristeza, alegria, ausência, encontro –

Passam, indiferentes.

Que ela tombe – a chuva, sobre os degraus,

Gota a gota, a noite inteira, até ser dia.





Por Jiang Jie (c. 1270)
Tradução de Gil de Carvalho
NO CORAÇÃO, TALVEZ





No coração, talvez, ou diga antes:

Uma ferida rasgada de navalha,

Por onde vai a vida, tão mal gasta.

Na total consciência nos retalha.

O desejar, o querer, o não bastar

Enganada procura da razão

Que o acaso de sermos justifique,

Eis o que dói, talvez no coração.





Por José Saramago

quarta-feira, 16 de junho de 2010



OUTUBRO






Aos olhos recém-chegados de outro mês esta

luz matinal atemoriza. parece antes

a última da tarde ou de tão deslocada

a que acende a noite fantasma dos eclipses.



Ela beijando-me as pálpebras sorriu do

meu temor: coitadinho vê lá se o outono

te come; e sem o sacudir dos nossos ombros

onde ele de facto pousara e nos comia.






Por António Gregório

terça-feira, 15 de junho de 2010



JERSEY GIRL

(com o Visconde, no Mezcal)





O amor costuma responder

por acordes simples

- um estertor de pássaro caído.

Depois, na minha vida, ficou

só uma cicatriz discreta - e um ou

outro pesadelo com a tua marca

de electrodomésticos preferida.

Coisas de que nem fica bem falar.



Mas ao quarto whisky, entre

rostos que não conheço,

sinto-me feliz. E percebo,

arduamente, que nunca precisei de ti.



Quem se mataria por tão pouco?





Por Manuel de Freitas
Música e interpreteção de Tom Waits

domingo, 13 de junho de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 5


(Cindy Sherman. Sem título, fotograma nº 21. 1978)





Vive por baixo da luz do pequeno chapéu que usa

não conhece bem a cidade

a verticalidade dos edifícios sobre o sangue

a sujidade



viaja de avião de um ponto para o outro

entre as vozes que a habitam.






Por António Amaral Tavares
(Ver mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

sábado, 12 de junho de 2010


POEMA






Alguma coisa onde tu parada

fosses depois das lágrimas uma ilha

e eu chegasse para dizer-te adeus

de repente na curva duma estrada



alguma coisa onde a tua mão

escrevesse cartas para chover

e eu partisse a fumar

e o fumo fosse para se ler



alguma coisa onde tu ao norte

beijasses nos olhos os navios

e eu rasgasse o teu retrato

para vê-lo passar na direcção dos rios



alguma coisa onde tu corresses

numa rua com portas para o mar

e eu morresse

para ouvir-te sonhar






Por António José Forte
Música de Bob Dylan
Interpretação de Them




Mesmo que o fim esteja plantado

Rego algumas sementes



Olhem!

Começou a desfolhar as margaridas...





Por Carmen Silvia Presotto
(Ler mais poesia sua em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

Fotografia de Robert Parkeharrison

quinta-feira, 10 de junho de 2010



PASSANDO A NOITE NO RIO JIANG-DE






A barca atraca na ilhota de bruma,

Crepúsculo: renasce a comoção do viajante.

Uma planura imensa: desce o céu às árvores,

Límpido, o rio: chega-se a lua aos homens






Por Meng Haoran (689-740)
Tradução de Gil de Carvalho




TEMPO





A mim que desde a infância venho vindo

como se o meu destino

fosse o exato destino de uma estrela

apelam incríveis coisas:

pintar as unhas, descobrir a nuca,

piscar os olhos, beber.

Tomo o nome de Deus num vão.

Descobri que a seu tempo

vão me chorar e esquecer.

Vinte anos mais vinte é o que tenho,

mulher ocidental que se fosse homem

amaria chamar-se Eliud Jonathan.

Neste exato momento do dia vinte de Julho

de mil novecentos e setenta e seis,

o céu é bruma, está frio, estou feia,

acabo de receber um beijo pelo correio.

Quarenta anos: não quero faca nem queijo. Quero a fome.





Por Adélia Prado
Arte de Van Gogh

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR






Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,

mas atravessa a noita, a madrugada, o dia,

atravessou minha vida,

virou só sentimento.





Por Adélia Prado

quarta-feira, 9 de junho de 2010



ACERCA DE GATOS





Contigo chegam os gatos: à frente

o mais antigo, eu tinha

dez anos ou nem isso,

um pequeno tigre que nunca se habituou

às areias do caixote, mas foi quem

primeiro me tomou o coração de assalto.

Veio depois, já em Coimbra, uma gata

que não parava em casa: fornicava

e paria no pinhal, não lhe tive

afeição que durasse, nem ela a merecia,

de tão puta. Só muitos anos

depois entrou em casa, para ser

senhor dela, o pequeno persa

azul. A beleza vira-nos a alma

do avesso e vai-se embora.

Por isso, quem me lambe a ferida

aberta que me deixou a sua morte

é agora uma gatita rafeira e negra

com três ou quatro borradelas de cal

na barriga. É ao sol dos seus olhos

que talvez aqueça as mãos, e partilhe

a leitura do Público ao domingo.





Por Eugénio de Andrade
Arte Vieira da Silva


Andiamo





Andiamo que a lua nos espera feita do mesmo pó, corpo e chão.

Andiamo que todos já se foram, restamos encantados pela mesma estrada, palavra e voz.



Vamos, agora...Já é madrugada e estamos mortos depois do sol.

Vamos, indo, antes de fazer dormir a fala de uma canção.





Por Adriana Bandeira
Fotografia de Brian Duffy

segunda-feira, 7 de junho de 2010



SEM TÍTULO





ele passa dias a fio na espera de algo novo. a luz do sol vai se

ofuscando, dá espaço ao mistério de cada noite. e ele a espreitar

cada movimento de luz, de sombra, cada barulho de folha seca na

ignomínia esperança de estar sendo perseguido.

encara o espelho: as imperfeições sempre fazem questão de se

exporem mais que as qualidades. e fica à mercê de si, portanto

inseguro se olhando nos olhos sem que consiga ver qualquer

coisa além da cor marrom da íris. não consegue penetrar no

próprio olhar.

mexe o corpo vertiginoso hora sem consciência e hora em súbita

sã consciência para lembrá-lo de suas ações. ignora.

quando se entrega ao inefável, ao impossível e ao incerto toma

goles longos de felicidade efémera.





Por Pedro Paulo
(Ler mais poesia sua em http://hermeticidadeconcisa.blogspot.com/)
fotografia de Charles Sheeler

domingo, 6 de junho de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 4


(Paula Horn Kotis. Num bar da Village. Década de 1950)





O seu rosto esconde-se pelos

braços caídos no balcão

o tronco parece torcido como se

contornasse o buraco da noite



retrata-se a solidão

e de alguma maneira se lembra a quem olha

quantos milhões habitam a cidade



aqui a sombra procura a luz do seu significado

e sob o arranjo da idade nos cabelos



quer morrer só.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

sábado, 5 de junho de 2010



EXPLICATIO





O gesto mais simples,

capaz de ordenar tudo,

foi o que não fizemos.





Por José Mário Silva
Música e interpretação de Bruce Springsteen

terça-feira, 1 de junho de 2010



MANIFESTO





Sim ao prazer sem custo.

Acatar, beber, dividir o bom

que venha feito o sol, gratuito



Quem sabe se o dom, o sem-razão

e o sem-motivos possam mais

do que exigimos. Nem se duvide



do que é capaz a coincidência

entre coisas. Nesse mundo

em que génios são servos de si mesmos,



pratique-se o descanso, para

que o fogo nunca esteja frio

e o coração passeie seus cavalos.





Por Eucanaã Ferraz