sábado, 16 de fevereiro de 2013








A EDIÇÃO INGLESA
para a Mariana Pinto dos Santos




Na primavera de 1476
o jovem Leonardo da Vinci
escreveu no verso de uma carta
desesperada: If there is no love,
what then? Escreveu-o, bem
entendido, no seu vernáculo
nativo – eu é que só tenho
a edição inglesa.

De quantas coisas
nesta vida, meu Deus, só tenho
a edição inglesa – quer dizer,
a precária, aproximativa
tradução? E que fazer
com estas noites de Junho,
se o amor, justamente,
é uma delas?




Por Rui Pires Cabral








A DERROTA




Então a derrota é este sofá com todas 
estas almofadas acompanhando a curva
do meu corpo prostrado? Comprei o pacote
mais caro de canais não tenho calor nem
frio e brevemente ela não virá tocar-me
à campainha (o deserto é desimpedido
vê-se desde a varanda até longa distância).


Não dói assim tanto afinal e se excluir
a infelicidade que deveras sinto
ser feliz será qualquer coisa semelhante.




Por António Gregório

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013








[PONHO PALAVRAS ONDE VOU MORRER]





ponho palavras onde vou morrer
e estremeço porque a vida se dissipa
como água derramada no soalho

entre muitas outras coisas escrever
é procurar nos confins

além tempo e sucessão de espaços
a demorada nomenclatura do efémero





Por Miguel-Manso

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013








PÃO




De que recantos da minha vida
surgiu na sala agora esta gente.

Falam para mim entre si não
e os mortos estão ausentes.

Esta preocupação de onde vem
de em casa não haver gota de pão.




Por Francisco José Craveiro de Carvalho







LATITUDES DO CAVALO 




Quando o mar tranquilo conspira armaduras
E as suas morosas e abortadas
correntes engendram monstrinhos,
A navegação tem certa a morte.
Horrífico instante
E o primeiro animal vai borda fora
Patas com toda a fúria devorando
O próprio galope obstinado e verde.
E erguem-se as cabeças
Equilíbrio
Delicado
Suspensão
Aceitação
Na ânsia das ventas mudas
Depuradas com cuidado
E seladas.




Por Jim Morrison
Tradução de Manuel João Gomes

domingo, 10 de fevereiro de 2013








CONSOANTES ÁTONAS





Emudecer o afe(c)to português?
amputar a consoante que anima
a vibração exa(c)ta 
do abraço, a urgência

Tá(c)til do beijo? Eu não nasci
nos Trópicos; preciso desta interna
consoante para iluminar a névoa
do meu dile(c)to norte.





Por Inês Lourenço

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013














À meia-noite, há uma menina que aprende a andar de bicicleta. E o som da campainha do guiador, riso fresco de criança, insinua-se através da janela, aberta, porque é uma noite de Verão e o calor.
No tempo em que os anos me cabiam nas mãos, também eu. O cesto da bicicleta branca que haveria de ter quando crescida estava repleto de flores que pedalavam rua abaixo numa liberdade feita de vento no rosto, loucura sem tino. Quando crescida, pensou ser devaneio de menina. Sonho aguardado, sonho relegado. Sonho que não cabe, afinal, em tempo algum.

Quem salvaria o mundo esta noite? Foste tu quem te escolheste, pois eu pensei que quisesse falar de amor.






Por Elisabete Albuquerque
arte de Aileen Leijten