domingo, 31 de outubro de 2010



TALVEZ UM BARCO






Podia dizer-to agora mesmo

mas do silêncio já nada me separa

ou só o tempo lento ainda de um momento

uma palavra só sem mais cansaço



Será talvez um barco se fores tu

- a chuva da manhã nos vidros limpos

e o vulto esguio perdido duna a duna

de quem regressa apenas de partida



Um pássaro esquecido brilha ainda

em dois olhares levemente embaciado

pela mesma indecisa febre antiquíssima



Podia dizer-to agora mesmo

E talvez seja um barco se fores tu

- ou serei eu talvez se for o mar






Por Miguel Serras Pereira


BECHEROVKA






Norueguesa, alta, de um moreno

duvidoso que sorria muito.

Pedia-me insistentemente para não estar

triste como deveras estava.

E pagou-me, creio, o último copo,

antes de me perguntar “o que fazia”.



Escrever, sobre a morte, não é

exactamente uma profissão.

Mas foi a resposta que lhe dei,

enquanto um guardanapo qualquer

abreviava, só para ela, a minha “obra”.



Nunca saberei se percebeu a letra,

se comprou os livros, se chegou

a ouvir o que em péssimo francês

lhe tentei dizer nessa noite, a mais perdida.



Os versos são quase sempre isto: um modo

inaceitável de dizer que não tocámos o corpo

que esteve, por uma vez, tão próximo

de nós – e que nem um nome breve nos deixou.






Por Manuel de Freitas


QUANDO FORES VELHA






Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,

Dormitando junto à lareira, toma este livro,

Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar

Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;



Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,

Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,

Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,

E amou as mágoas do teu rosto que mudava;



Inclinada sobre o ferro incandescente,

Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou

E em largos passos galgou as montanhas

Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.






Por W. B. Yeats
Tradução de José Agostinho Baptista

sábado, 30 de outubro de 2010





Quando eu era criança os velhos escolhiam

dias amarelos para morrer. Trazia

os pés descalços sobre muitos caminhos

como se não ouvisse a minha mãe

a chamar-me para dentro.

O céu pesava avermelhadamente sobre

a minha cabeça como o linho sobre os mortos.

Depois houve muitos invernos.

Intempéries de silêncio debaixo das arcadas

anunciaram o fim do mundo.



As paredes de casa eram permeáveis à luz.

A minha mãe tinha a densidade interior

de uma mesa e braços extensíveis:

archotes para fora ou bosques de bétulas.



A minha mãe pousava na superfície

do outono como um anjo ferido.

Quando eu era criança a tijoleira da cozinha

representava constelações e eu esperava

pacientemente o dia da ira do Senhor.



Quando eu era criança anoitecia

sobre a verdade intrínseca de haver ruas

pequenas e horizontes pequenos no fundo

das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira

das portas nas noites de verão e as raparigas

sangravam demoradamente o calor

para dentro dos pulmões e cresciam-lhes

os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu

era criança a minha mãe pousava na superfície

do outono como um anjo ferido.







Por José Rui Teixeira
Fotografia de Karena Goldfinch



Não sei como dizer-te que a minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e casta.

Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima,

– eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.



Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

o coração é uma semente inventada

em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.

– E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes caem no meio do tempo,

– não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.



Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço –

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me falta

um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,

o amor,



que te procuram.








Por Herberto Helder

terça-feira, 26 de outubro de 2010



MECÂNICA POPULAR






Os enormes problemas de engenharia

Que encontrarás ao tentar crucificar-te

Sem ajudantes, roldanas, engrenagens,

E outros dispositivos mecânicos inteligentes –



Numa sala pequena, clara e despida

Apenas uma cadeira de pernas frouxas

Para alcançar a altura do tecto –

Um só sapato para martelar os pregos,



Já p’ra não falar de estares nu para a ocasião –

De modo que cada músculo costal se exiba,

A tua mão esquerda já cravada,

Apenas a direita para limpar o suor



E ajudar-te a alcançar a beata

Do cinzeiro a transbordar,

Que não conseguirás acender –

E a noite chegando, a longa noite zumbindo.






Por Charles Simic
Tradução de João Luís Barreto Guimarães
Fotografia de Robert Parkeharrison

quarta-feira, 20 de outubro de 2010



O HOMEM QUE VINHA AO ENTARDECER


(Ouvindo “Sonho de Um Camponês”, por Teta Lando)






Falava com devagar, ajeitando as

palavras. Falava com cuidado,

houvesse lume entre as palavras.



Chegava ao entardecer, os sapatos

cheios de terra vermelha e do perfume

dos matos.



Cumpria rigorosamente os rituais.



Batia primeiro as palmas (junto

ao peito)

Depois falava.

Dos bois, das lavras, das coisas

simples do seu dia-a-dia. E todavia

era tal o mistério das tardes quando

assim falava

que doía.






Por José Eduardo Agualusa

terça-feira, 12 de outubro de 2010



TÂNIA






Vens pela praia

descalça deusa

em pensamentos

absorta



posso ser teu guia

consolo

o riso fácil

no comentário alegre



teus pés n'água afastam

os passos rápidos

o olhar no horizonte

enfrenta as águas

por onde passas a areia

te faz leve traço



posso ser o barco ao longe

onde olhas o espaço

guardião da terra

em último compasso.






Por Pedro Du Bois
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http://pedrodubois.blogspot.com/
Imagem de AAT

domingo, 10 de outubro de 2010



AS MOSCAS






Vós, familiares,

inevitáveis gulosas,

vós, moscas vulgares,

lembrais-me todas as coisas.

Oh, velhas moscas vorazes

como abelhas em Abril,

velhas moscas pertinazes

sobre a minha calva infantil!

Moscas do primeiro fastio

na sala familiar,

as claras tardes de estio

em que comecei a sonhar!

E na aborrecida escola,

ágeis moscas divertidas,

perseguidas

por amor de tudo que voa,

- que tudo é voar – sonoras

embatendo nas vidraças

nas tardes de Outono, lassas…

Moscas de todas as horas,

da infância e adolescência,

da minha juventude dourada;

de esta segunda inocência,

que dá o não crer em nada,

de sempre… Moscas vulgares,

que de tão familiares

não tereis digno cantor:

eu sei que tereis poisado

sobre o brinquedo encantado,

sobre o livro fechado,

sobre a carta de amor,

sobre os olhos absortos

dos mortos.

Inevitáveis gulosas,

que não labutais como abelhas,

nem brilhais como borboletas;

pequeninas, facetas,

vós, amigas velhas,

lembrais-me todas as coisas.






Por Antonio Machado
Tradução de José Lima


O PAÍS DAS MARAVILHAS






Não se entra no país das maravilhas

pois ele fica do lado de fora,

não do lado de dentro. Se há saídas

que dão nele, estão certamente à orla

iridescente do meu pensamento,

jamais no centro vago do meu eu.

E se me entrego às imagens do espelho

ou da água, tendo no fundo o céu,

não pensem que me apaixonei por mim.

Não: bom é ver-se no espaço diáfano

do mundo, coisa entre coisas que há

no lume do espelho, fora de si:

peixe entre peixes, pássaro entre pássaros,

um dia passo inteiro para lá.






Por Antonio Cicero
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Fotografia de Aguiadourada