sábado, 25 de setembro de 2010
Não partas já. Fica até onde a noite se dobra
para o lado da cama e o silêncio recorta
as margens do tempo. É aí que os livros
começam devagar e as cores nos cegam
e as mãos fazem de norte na viagem. Parte apenas
quando a manhã se ferir nos espelhos do quarto
em estilhaços de luz; e um feixe de poeiras
rasgar as janelas como uma ave desabrida.
Alguém murmurará então o teu nome, vagamente,
como a gastar os dedos na derradeira página.
E então, sim, parte, para que outra história se
invente mais tarde, quando os pássaros gritarem
à primeira lua e os gatos se deitarem sobre
o muro, de olhos acesos, fingindo que perguntam.
Por Maria do Rosário Pedreira
Arte de Samuel van Hoogstraten
saltei do precipício
e a queda se fez caminho
Por Eugênia Fraietta
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sábado, 18 de setembro de 2010
PRESSA DE VIVER
( para o Zé, que nunca lerá este poema)
Negro , trinta e dois anos,
dealer. Pensava que a guerra
no Kosovo tinha por motivo único
a resistência à conversão em euros
- e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura
razão. Noutra noite, vi-me obrigado
a explicar-lhe o melhor que pude
o que era o FMI – que ele decerto
interpretou como um partido de ‘tugas
vagamente hermético. De facto, é outra
a sua economia: contos de xamon, pastilhas,
piropos de esquina, os dois ou três filhos
de que apenas bêbedo se lembra.
Mas não é bem disso que eu hoje
queria falar. Passámos a noite
lado a lado, no mesmo balcão.
Demorei algum tempo a cumprimentá-lo
- “tá-se?”. Pediu logo grandes, imensas
desculpas por não me ter visto.
Que era “pressa de viver”, garantiu-me,
aquilo que nos torna tão cegos
às evidências, ao rosto desse próximo
que só por bíblico acaso amamos
- quando o ódio, mais discreto,
dá nome e sentido às ruas.
Fingi acreditar, procurei não
desmentir o seu olhar verde
vindo de outro qualquer planeta.
Seria difícil explicar-lhe àquela hora
a compulsiva demora de morrer
que me faz sair de casa e procurar,
entre ninguém, a pior das companhias: eu.
Acabou por levar para a rua
uma imperial de plástico, lembrado
talvez dos possíveis clientes
a quem ajudará a esquecer um emprego,
o desamor, o calor sinistro deste Verão.
Na verdade, pouco mais haveria
a dizer sobre este corpo brando que
há vários anos se encosta às minhas noites.
Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos
- e protege-se, o melhor que pode,
da rusga sem objecto a que chamamos vida.
Por Manuel de Freitas
Música e interpretação de Velvet Underground
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
DEZEMBRO
Neva
e mesmo assim os desamparados
continuam
a transportar cartazes em sanduíche -
um proclamando
o fim do mundo
o outro
os preços de um barbeiro local.
Por Charles Simic
terça-feira, 7 de setembro de 2010
1988, CHET BAKER
Prometeu que tocaria My
Funny Valentine como nunca
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).
Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer "stay
little valentine" e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.
Sim, é isso: ninguém nos espera
- e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.
Mas não me roubem, por favor, esta canção.
Por Manuel de Freitas
Interpretação musical de Chet Baker
domingo, 5 de setembro de 2010
NOVA IORQUE
A cidade grande morre de frio
e a chuva não lava os rostos
de seus negros
A cidade brilha nas paredes molhadas
e à noite
homens passam correndo
nas esquinas
sem nome
Um gato se enrosca no jornal velho
e o asfalto treme
à passagem do subway
Nas ruas, muros
nos letreiros, luzes
nas vitrinas, cifras
nas calçadas, povo
mas tudo tão frio
na cidade
Belas moças que passais
por que não vos importais
com o frio que está fazendo?
Jovem loura distraída
por que é duro o vosso olhar?
Rostos, muitos
gente, pouca
nas ruas de Nova Iorque.
Por Mauro Salles
sábado, 4 de setembro de 2010
garças brancas
sobre o lago
impassível
- movimento
e não
tudo
na natureza
se equilibra
Por Nydia Bonetti
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