domingo, 30 de maio de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 3


(Dan Weiner. Noite de Ano Novo, Times Square. 1951)





Da roupa sempre igual e áspera

de todos os dias

como se vestisse da pedra unicamente a poeira

o olhar encontrou o seu navio

(a boca esconde-se por trás de um cornetim festivo que sopra)



um pouco recuado

quase oculto na multidão

o vulto de um marinheiro veste

os passos de um anjo.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

sábado, 29 de maio de 2010



ODE LOUCA





Todos os homens têm o seu rio.

Lamentam-no sentados no interior das casas

de interior e como o poeta que escreve a lápis

apagam a memória com a sua água.

Os rios abandonam os homens que envelhecem

longe da infância, e eles choram

o reflexo absurdo na distância.

Por vezes, enlouquecem os rios, os homens,

os poetas nas palavras repetidas

que buscam uma ode que lhes diga

a textura. Todos procuram o mesmo:

um lugar de água mais limpa

ou um espelho que não lhes negue

a hipótese do reflexo.

O rio sofre mais do que o homem,

o poeta,

porque dele se espera que nos devolva

a imagem de tudo, menos de si próprio.

Todos os rios têm o seu narciso,

mas poucos, muito poucos,

o simples reflexo das suas águas.





Por Filipa Leal
Fotografia de Robert Parkeharrison

terça-feira, 25 de maio de 2010



DATAS





Não é o dia aprazado

o atraso me faz

fragilizado

ao encontro:



altero o calendário

ao necessário



nos dias seguintes

retorno ao anterior

acaso: incompleto

o ciclo se debate

em dúvidas estelares.





Por Pedro du Bois
(Ler mais poemas seus em http://pedrodubois.blogspot.com/)

domingo, 23 de maio de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 2


(Walker Evans. Rapariga em Fulton Street, Nova Iorque. 1929)





Parece actriz

ou preferir um lugar onde a verdade

encarne o significado das coisas



por detrás do frio

o olhar ainda reflecte vagamente as colinas e a forma

como as nuvens se transformavam

com o vento da tarde da terra onde cresceu



e furioso não o quer lembrar



a boca fechada conhece bem a cidade

e só fala no calor das casas.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

segunda-feira, 17 de maio de 2010



1952-2001





Sabes, Miguel? Tu não foste um morto

rentável, desses sobre quem muitos

depois escrevem prantos rimados

e apressados encómios. Não tiveste amigos

desses. Ainda bem. Faltou-te em obra

(escrita e publicada) o que ao fim da noite

te sobrava de vida – coisa tão pouco afim

de carpideiros que ignoram com devoção

a morte de que não morrem.



Não faz mal. Eu lembro-me:

dos copos quase adolescentes que trazias

nos bolsos à saída de bares na moda

ou daquele “poema” que gostarias de ter escrito

num computador portátil, só porque

um poeta – sim, o Fernando – te quis honrar

em vida o nome. O Zé estava lá, sorria,

e concordará talvez que esses gestos sem futuro

têm mais poesia do que tantas e prefaciadas

obras reunidas que fazem das livrarias

bordéis de pouca alma, hipóteses de terror.



Gente que escreve bem, admito,

merceeiros do sublime que ocasionalmente

te apertaram a mão nos engalanados

salões da cultura. Boa gente…

Eu, mais de fora, pouco tenho a dizer.

Eram antes roulottes, discotecas tristes,

o sorriso de álcool com que a manhã tomba

sobre nós e se despede para sempre.



O teu carro era veloz, tornava pequena

e sórdida a vinte e quatro de Julho.

demasiado veloz, o teu carro, a notícia

sem rasura que chegou de noite

ao silêncio dos corações disponíveis.



Não faz mal. São coisas que acontecem

a “esses gajos da noite”. Pois, sabemos muito

bem: a morte, essa certeza improvável.

Bebemos, claro, e fingimos que o nome

dos mortos se apaga na euforia

baça com que os dias se sucedem.

Também temos, por enquanto, uma razão

precária e urgente para fingirmos e ficarmos.

O que é muito humano – e um pouco desprezível.



Só nunca saberei o que me querias dizer

sobre Blanchot, l’entretien (in)fini. Não esperei

que regressasses do carro, com o livro anotado,

e o último copo parece-me agora

uma despedida incompleta, um rasto de cinza

que tinge de mágoa o balcão a que me encosto.



Deus, Miguel, é esse estafermo iletrado

a quem nunca dedicaste um verso. Fizeste bem.





Por Manuel de Freitas

domingo, 16 de maio de 2010



RETRATO DE UMA NOVA IORQUINA Nº 1


(Louis Faurer. Sem título. 1948)





O casaco sintético parece ter estampada

a pele de um animal que ela não sabe

mas talvez não exista dando-lhe de todo

uma aparência de pássaro frágil



a mão rude as unhas pintadas

segura um cigarro que chupa

entre fumo e cinza



as feições são magras abandonadas

à geometria da cidade



parece olhar uma montra –

o cabelo claro

apanhado à frente e solto atrás

guarda todo o erro dos sonhos.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/ )

quinta-feira, 13 de maio de 2010



é possível que,

de agonia,

rasgue meus olhos

com meus próprios dentes.





Por Eugênia Fraietta
(Ler mais poesia sua em http://bichodesetecabecas-ge.blogspot.com/ )

quarta-feira, 12 de maio de 2010



AS SETE LUAS


(para a poeta Lara Amaral)





Quando as sete luas passarem

e o tempo mostrar a rota da primavera

colherei flores no campo para te oferecer,

catarei fiapos de sol para amornar

minhas mãos em gestos de espera

e mostrarei o meu melhor sorriso

para ávido e ansioso te receber

no mesmo alpendre que um dia

te viu partir com chispas de luas nas mãos.

Não desespere, amiga e amor, espere um pouco mais

que toda essa angústia e agonia

vão acabar com o sopro de tua chegada

pois sete luas passam rápido demais.





Por Julio Rodrigues Correia
(Ler mais poesia sua em http://acroatico.blogspot.com/ )
Imagem de AAT


A ALMA DO SOLDADO





todos os dias são como uma marcha rigorosa

me apresento de prontidão, bato continência

o grito de guerra arranha para sair, mas sai

marchando com os pés firmes

surgem os obstáculos

afogo

tropeço

caio com a cara na terra

aprende-se a ser humano nessas marchas

aprende-se que o erro é inevitável

aprende-se que temos alma.



temos alma, mas não somos soldados

somos humanos camuflados

e sempre que me levanto da cadeira olho para trás

como se certificasse de não ter esquecido um pedacinho de mim





Por Pedro Paulo
(Ler mais poesia sua em http://hermeticidadeconcisa.blogspot.com/)


OS FELIZES DIAS





o dia hoje fracassou

não cumpriu com seu papel

o dia hoje trouxe desafetos, atritos

lágrimas, incompreensões.



inventaram felizes dias

conjunto de dias dos quais hoje faz parte

feliz dia disso, daquilo



venderam uma ideia:

dias felizes têm que ser necessariamente felizes

eu comprei

mas exijo devolução!





Por Pedro Paulo
(Ler mais poesia sua em http://hermeticidadeconcisa.blogspot.com/ )

domingo, 9 de maio de 2010



OS PASSOS


(Lisette Model. Times Square. 1940)






Nada se sabe dos passos em redor



ocupam espaços que defendem

os silêncios desta cidade.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/ )

quinta-feira, 6 de maio de 2010



NÉVOAS





Cinzas

passado

Suor

e lágrimas



Nada é domável

durmo em sonhos não vividos



Esqueci meus luares imaginários



O último trem levou o lenço

e ainda aceno pelo teu beijo.





Por Carmen Silvia Presotto
(Ler mais poesia sua e de outros em
http://vidraguas.com.br/wordpress/)
Imagem de AAT

segunda-feira, 3 de maio de 2010



FADO





Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.

Estou assustada à espera que regresses: as ondas já

engoliram a praia mais pequena e entornaram algas

nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que

as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas

que perseguiram os pombos e os morderam.



A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno

à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes

para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda

que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo

de ervas com canela; e há compota de ameixas

e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu



estou assustada. A lua está apenas por metade,

a terra treme. E eu tremo com medo que não voltes.





Por Maria do Rosário Pedreira

domingo, 2 de maio de 2010



AS PONTES DE NOVA IORQUE


(Berenice Abbott. Pike and Henry Streets, Lower East Side. 1936)





O olhar encontra de uma vez só

uma porção ínfima da cidade que se escolheu



o rosto rígido dos edifícios sobre a rua



na continuidade da vista e da rua

uma ponte surge envolta na neblina do dia

em que se chegou



e como uma sombra branca

lembra a ideia vaga de uma partida



é um cavalo sem dono a partida

não se morre duas vezes na mesma cidade.





Por António Amaral Tavares
(Ler mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/ )

sábado, 1 de maio de 2010



Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos

Porque tinha uma mulher no pensamento

Sei que os lavava como se os contasse



Sei que os enxugava com a luz da mulher

Com os seus olhos muito claros voltados para o centro

Do amor, na operação poderosa

Do amor



Sei que cortava os cabelos para procurá-la

Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados



Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava

O cabelo no seu sangue



Na água corrente



Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir

E a mulher cantava para o homem respirar





Por Daniel Faria
Quadro de Marc Chagall


As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos – digo,

As mulheres – ainda que as casas apresentem os telhados inclinados

Ao peso dos pássaros que se abrigam.



É à janela dos filhos que as mulheres respiram

Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas

Transformam-se em escadas



Muitas mulheres transformam-se em paisagens

Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram

Nos ramos – no pescoço das mães – ainda que as árvores irradiem

Cheias de rebentos



As mulheres aspiram para dentro

E geram continuamente. Transformam-se em pomares.

Elas arrumam a casa

Elas põem a mesa

Ao redor do coração.





Por Daniel Faria
Quadro de Marc Chagall