segunda-feira, 29 de agosto de 2011


















APONTAMENTO SOBRE POESIA MODERNA











a poesia avança há muito tempo, embora devagar;

tu não és tão velho como Eu sou

e Eu consigo lembrar-me de ler

revistas onde no fim do poema

dizia:

Paris, 1928.

isso parecia fazer alguma

diferença, e assim, aqueles que podiam

(e alguns que não podiam)

foram para

PARIS

e escreveram.




Eu também sou suficientemente velho para lembrar

quando os poemas faziam referências aos deuses Gregos e

Romanos.

se tu não conhecesses os teus deuses não eras um

bom escritor.

e, se não conseguisses escrever um verso em

Espanhol, Francês ou

Italiano,

tu não eras definitivamente um bom

escritor.




há 5 ou 6 décadas atrás,

talvez 7,

alguns poetas começaram a usar

eu em vez de Eu

ou

& em vez de e.




muitos ainda usam eu

e muitos continuam a usar

&

pensando que é poeticamente efectivo e

actualizado.




e, a mais velha ideia ainda em voga é

que se não consegues entender um poema é

quase certo que é

um bom poema.




a poesia ainda avança devagar, penso eu,

e quando todos os mecânicos de automóveis

começarem a trazer livros de poesia para ler

durante o almoço

só aí saberemos de certeza que estamos a avançar

na direcção

certa.




&

disso

eu

tenho a certeza.










Por Charles Bukowski

domingo, 28 de agosto de 2011




















NÃO ENTRES DOCILMENTE NESSA NOITE SERENA









Não entres docilmente nessa noite serena,

porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;

odeia, odeia a luz que começa a morrer.




No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,

porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles

não entram docilmente nessa noite serena.




Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia

o brilho das suas frágeis acções ter dançado na baia verde,

odiai, odiai a luz que começa a morrer.




E os loucos que colheram e cantaram o voo do sol

e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,

não entram docilmente nessa noite serena.




Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega

quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,

odiai, odiai a luz que começa a morrer.




E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria

venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.

Não entres docilmente nessa noite serena.

Odeia, odeia luz que começa a morrer.










Por Dylan Thomas

Tradução de Fernando Guimarães














SALVE REGINA


para a Inês









«Isto já não tem melhoras» – acabou

por nos dizer Zulmira, referindo-se

à sua perna atropelada, à vida,

ao filho que há três anos lhe mataram,

embora se chamasse Epifânio.




E ficou assim, completamente sozinha,

deusa rude e resignada que veio

dos campos servir vinhos e cervejas

a uma «freguesia» que foi, em tempos,

tão imensa como é agora a sua solidão.




Uma quase mansa solidão, se virmos bem,

uma tristeza sem lágrimas, uma sabedoria

que se volta a confundir com o azul forte das paredes,

com o seu nome último e inquebrantável,

a «passar o tempo» entre os muros deste reino.




Tem agora a mesma idade que Maria,

abre só para ti uma garrafa de ginja

e assiste calmamente ao fim do mundo.







Por Manuel de Freitas

sábado, 27 de agosto de 2011















GROTTO









Não quero nada claro ou helénico.

Prefiro turbinas de aviões comerciais, a sua fuligem

doméstica

às velas de alabastro do veleiro de Ulisses

lá em mar alto.

Prefiro o eclipse a Calipso.

Não quero nada de verdadeiramente branco.

Dispenso a asa delta de garças,

o seu voo aerodinâmico,

troco-o pela arribação de ratos no esgoto,

a sua pressa chinesa,

o seu stress pós-traumático:

orgulham-me criaturas tão limpas.

Assim também recuso o papel branco:

trato de o desfigurar

com sangue negro, como se desfigura

um branco em Harlem.

Não quero começar a imaginar como se sentiriam

escravos nos campos de algodão.










Por Daniel Jonas

Arte por Lefevre Jules Joseph

domingo, 21 de agosto de 2011





















FORMIGA










"Pai, anda cá", diz a minha filha.

Pela parede branca sobe uma formiga,

minúscula, muito lenta, obstinada.

A minha filha encolhe o corpo

pequenino para olhar. Não sei se é

a primeira vez que vê uma formiga;

mas é, parece-me, a primeira vez

que se apercebe da enorme diferença

de escala que a separa do insecto.

A minha filha acompanha a subida

heróica da formiga pela parede

branca, vira-se para mim, sorri.

É nesse espaço subitamente tenso,

criado entre a alegria infantil da

descoberta e o esforço irracional

da formiga, que nasce o poema,

mesmo se eu já desisti dele para

limpar o ranho que a minha filha,

absorta, deixou chegar até à boca.










Por José Mário Silva

segunda-feira, 15 de agosto de 2011















NO PRONTO-A-VESTIR









Não precisava de outro par de calças

mas a luz, o suborno dos sorrisos, a ternura

de cetim obrigaram-me a entrar.

Depois, na pátria dos Lotófagos,

a festa carmesim, o vermelho-coração,

o gosto a paraíso nos decotes de veludo

– entre ganga e algodão dividi o meu pesar.




Tempos houve em que das torres das igrejas

se avistavam os limites da cidade (ou era

da verdade?). Mas foram, como sabes, encolhendo.

Pouco a pouco fomos vendo, impossíveis

de limpar, as nódoas nos tecidos mais amados,

o nastro dos afectos desfiado pelo vento.

Desbotaram os caminhos, alargaram os casacos

e a sombra dos sobreiros, quem a viu e quem a vê.




Nada disso, porém – garantiram-me na loja –

poderá acontecer com as minhas calças novas.








Por José Miguel Silva

quarta-feira, 10 de agosto de 2011





















AQUI CRESCE A SAUDADE











quando viajasse para visitar parentes na capital,

levaria os seis filhos e o deixaria sozinho por dias,

sem a sopa de ossobuco, sem seus peitos quentes.

depois de embarcá-los na estação de trem,

ele decidiu não fazer a barba até a sua volta.

quando ela retornou, descobriu-a já grisalha,

passou-lhe a mão de saudade pelo rosto triste:

-faça a barba, pra mim, meu bem.

ele deu de ombros e, com pouco caso fingido:

-tá bom, tá bom, eu faço.











Por Eugênia Fraietta
Ler mais poesia sua em http://bichodesetecabecas-ge.blogspot.com/     

terça-feira, 9 de agosto de 2011
















POEMA DE AMOR











A dor serve sempre para alguma coisa.

A tua mãe faz malha.

Despacha cachecóis em todos os tons de vermelho.

Eram para o Natal, e mantinham-te quente

enquanto ela casava, uma vez e outra, levando-te

consigo. Como poderia ter dado certo

se ela escondeu o seu coração de viúva todos esses anos

como se os mortos pudessem regressar.

Não admira que sejas como és,

com medo de sangue, as tuas filhas

como paredes de tijolo, uma após outra.











Por Louise Glück
Tradução de António Ladeira




















FEIRA


Para Hayden Carruth










Se não viste o cão de seis patas,

Não tem importância.

Nós vimos, e ele praticamente só ficava deitado a um canto.

Quanto às pernas extra




As pessoas habituavam-se rapidamente àquilo

E pensavam noutras coisas.

Como, que noite fria e escura

Para se andar na feira.




Depois o dono atirou um pau

E o cão foi apanhá-lo

Nas quatro patas, as outras duas a abanar atrás,

O que fez uma rapariga dar um guincho de riso.




Estava bêbeda tal como o homem

Que teimava em beijar-lhe o pescoço.

O cão apanhou o pau e olhou para nós.

E o espectáculo era aquilo.







Por Charles Simic
Tradução de António Ladeira
Arte de Ricardo Cruzeiro

segunda-feira, 8 de agosto de 2011
















O ESPÓLIO DA INFÂNCIA











de meu avô já morto, restam,

no meu rosto, alinhavadas pausas

(cicatrizes bem aferidas

pelas facas da sina)

me ensaiava a goela para a

hora da aguardente benta

o âmago para o tempo

azedo de testar meu

poder de adocicamento

e se ria, entre cânticos de rezas

: “só os silêncios me engasgam”









Por Wilson Nanini

Ler mais poesia sua em http://wilsonnanini.blogspot.com/ (abismos ao relento)

domingo, 7 de agosto de 2011

















pariso

novayorquizo

moscoviteio

sem sair do bar




só não levanto e vou embora

porque tem países

que eu nem chego a madagascar









Por Paulo Leminski

sábado, 6 de agosto de 2011
















METEOROLÓGICA









Deus não me deu

um namorado

deu-me

o martírio branco

de não o ter




Vi namorados

possíveis

foram bois

foram porcos

e eu palácios

e pérolas




Não me queres

nunca me quiseste

(porquê, meu Deus?)




A vida

é livro

e o livro

não é livre




Choro

chove

mas isto é

Verlaine




Ou:um dia

tão bonito

e eu

não fornico







Por Adília Lopes




















A verdadeira mão que o poeta estende

não tem dedos:

é um gesto que se perde

no próprio acto de dar-se




O poeta desaparece

na verdade da sua ausência

dissolve-se no biombo da escrita




O poema é

a única

a verdadeira mão que o poeta estende




E quando o poema é bom

não te aperta a mão:

aperta-te a garganta










Por Ana Hatherly





















VARIAÇÃO SOBRE UM TEMA ANTIGO










Vem de tão longe que tenho piedade

dos seus cães: abro a porta, aceito

a festa dos animais.

Aproximou as mãos do fogo

e encontrou a flauta, levou-a

à boca: então o silêncio brilhou

acariciado.










Por Eugénio de Andrade