sexta-feira, 31 de dezembro de 2010



LIÇÃO DE TRAVESSIA






Sempre que vejo um rio

parece que do outro lado está a Argentina



As balsas carregadas da infância

sumiram do meu olhar

Mas a ponte permaneceu

como eterna promessa

de que todas as margens podem ser pisadas



O mundo não tem lado certo

pois há uma ponte sólida

por cima de todas as águas






Por Nei Duclós

domingo, 26 de dezembro de 2010



OS NUS DE BONNARD






A sua mulher. Durante quarenta anos ele pintou-a.

Uma e outra vez. O nu da última pintura

igual à jovem nudez da primeira. A sua mulher.



Tal como se recordava dela enquanto jovem. Como se ela o fosse.

A sua mulher no banho. Na sua cómoda

em frente ao espelho. Nua.



A sua mulher com as mãos debaixo dos seios,

olhando o jardim.

O sol concedendo cor e calor.



Todas as coisas vivas a florescer ali.

Ela jovem e trémula e tão desejável.

Quando ela morreu, ele pintou por mais algum tempo.



Algumas paisagens. Depois morreu.

E puseram-no junto dela.

A sua jovem mulher.






Por Raymond Carver
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede, http://arspoetica-lp.blogspot.com/
Arte de Pierre Bonnard

sábado, 25 de dezembro de 2010



MORTE AO MEIO-DIA






No meu país não acontece nada

à terra vai-se pela estrada em frente

Novembro é quanta cor o céu consente

às casas com que o frio abre a praça



Dezembro vibra vidros brande as folhas

a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal

que o mais zeloso varredor municipal

Mas que fazer de toda esta cor azul



que cobre os campos neste meu país do sul?

A gente é previdente cala-se e mais nada

A boca é pra comer e pra trazer fechada

o único caminho é direito ao sol



No meu país não acontece nada

o corpo curva ao peso de uma alma que não sente

Todos temos janela para o mar voltada

o fisco vela e a palavra era para toda a gente



E juntam-se na casa portuguesa

a saudade e o transístor sob o céu azul

A indústria prospera e fazem-se ao abrigo

da velha lei mental pastilhas de mentol



Morre-se a ocidente como o sol à tarde

Cai a sirene sob o sol a pino

Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde

Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?



Há neste mundo seres para quem

a vida não contém contentamento

E a nação faz um apelo à mãe,

atenta a gravidade do momento



O meu país é o que o mar não quer

é o pescador cuspido à praia à luz

pois a areia cresceu e a gente em vão requer

curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia



A minha terra é uma grande estrada

que põe a pedra entre o homem e a mulher

O homem vende a vida e verga sob a enxada

O meu país é o que o mar não quer







Por Ruy Belo

terça-feira, 21 de dezembro de 2010



METADE






Que a força do medo que eu tenho,

não me impeça de ver o que anseio.



Que a morte de tudo o que acredito

não me tape os ouvidos e a boca.



Porque metade de mim é o que eu grito,

mas a outra metade é silêncio...



Que a música que eu ouço ao longe,

seja linda, ainda que triste...



Que a mulher que eu amo

seja para sempre amada

mesmo que distante.



Porque a metade de mim é partida,

mas a outra metade é saudade.



Que as palavras que eu falo

não sejam ouvidas como prece

e nem repetidas com fervor,

apenas respeitadas,

como a única coisa que resta

a um homem inundado de sentimentos.



Porque metade de mim é o que ouço,

mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora

se transforme na calma e na paz

que eu mereço.



E que essa tensão

que me corrói por dentro

seja um dia recompensada.



Porque metade de mim

é a lembrança do que fui,

a outra metade eu não sei.



mais do que uma simples alegria

para me fazer aquietar o espírito.



E que o teu silêncio

me fale cada vez mais.



Porque metade de mim

é abrigo, mas a outra metade é cansaço.



Que a arte nos aponte uma resposta,

mesmo que ela não saiba.



E que ninguém a tente complicar

porque é preciso simplicidade

para fazê-la florescer.



Porque metade de mim é platéia

e a outra metade é canção.



E que a minha loucura seja perdoada.



Porque metade de mim é amor,

e a outra...

também.






Por Ferreira Gullar

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010



CÁRCERE PRIVADO






vivo em cárcere privado

por livre e espontânea vontade

ao meu amor muito obrigado

por me livrar da liberdade






Por Chacal
Arte por Salvador Dalí

domingo, 12 de dezembro de 2010



LUARES






Ao longe,

com nossa teia,

tomaremos os remos

e feito postigos destes suspiros

desabitaremos pessoa do nada



fonte de gentes

sujeitos

pontes

e passagens



andarilhos Spartacus



Em letras,

das garrafas jogadas ao tempo,

seremos os cartões postais…






Por Carmen Sílvia Presotto
Ler mais poesia sua e de outros em http://vidraguas.com.br/wordpress/
Arte de Steve Hanks

sábado, 11 de dezembro de 2010

ver apresentação

BLADE RUNNER WALTZ






Em mil novecentos e oitenta e sempre,

ah, que tempos aqueles,

dançamos ao luar, ao som da valsa

A Perfeição do Amor Através da Dor e da Renúncia,

nome, confesso, um pouco longo,

mas os tempos, aquele tempo,

ah, não se faz mais tempo

como antigamente

Aquilo sim é que eram horas,

dias enormes, semanas anos, minutos milênios,

e toda aquela fortuna em tempo

a gente gastava em bobagens,

amar, sonhar, dançar ao som da valsa,

aquelas falsas valsas de tão imenso nome lento

que a gente dançava em algum setembro

daqueles mil novecentos e oitenta e sempre.






Por Paulo Leminski
Excerto de "Blade Runner" de Ridley Scott

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010



O CORVO






Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,

Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,

E já quase adormecia, ouvi o que parecia

O som de alguém que batia levemente a meus umbrais

«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.

É só isso e nada mais.»



Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,

E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.

Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada

P'ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,

Mas sem nome aqui jamais!



Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo

Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!

Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,

«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;

Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.

É só isso e nada mais».



E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,

«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;

Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,

Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,

Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.

Noite, noite e nada mais.



A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,

Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.

Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,

E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —

Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.

Isto só e nada mais.



Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,

Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.

«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.

Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»

Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.

«É o vento, e nada mais.»



Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,

Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.

Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,

Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,

Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.

Foi, pousou, e nada mais.



E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura

Com o solene decoro de seus ares rituais.

«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,

Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!

Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»

Disse-me o corvo, «Nunca mais».



Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,

Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.

Mas deve ser concedido que ninguém terá havido

Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,

Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,

Com o nome «Nunca mais».



Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,

Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.

Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento

Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais

Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».

Disse o corvo, «Nunca mais».



A alma súbito movida por frase tão bem cabida,

«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.

Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono

Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,

E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais

Era este «Nunca mais».



Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,

Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;

E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira

Que qu'ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,

Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,

Com aquele «Nunca mais».



Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo

À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,

Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando

No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,

Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,

Reclinar-se-á nunca mais!



Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso

Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.

«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te

O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,

O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».



«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!

Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,

Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida

Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,

Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».



«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!

Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!

Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!

Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».



E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda

No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,

E a minh'alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á... nunca mais!






Por Edgar Allan Poe
Tradução de Fernando Pessoa (ritmicamente conforme o original)
Arte por Gustav Doré


SÃO OS PÁSSAROS QUE LEVANTAM O DIA PARA O CEGO






São os pássaros que levantam o dia para o cego.

Ouve-se a luz pendurada das árvores

e uma transfusão de sangue acelerado que acumula nos tímpanos

os latidos roubados à noite.



Amanhece.



Tíbias gotas de azul salpicam de manhã

os párabrisas dos carros.

Alguém, equivocado,

abriu o guarda-chuva pensando que chove.






Por Federico Gallego Ripoll
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede (http://arspoetica-lp.blogspot.com/)

domingo, 5 de dezembro de 2010



RETRATO






Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.



Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.



Eu não dei por esta mudança

tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida

a minha face?






Por Cecília Meireles
Arte por Apard Szènes


DISPONIBILIDADE






Vem ver a vida

Passear silenciosamente

Como a ave no ar claro.



Vê-a que desce. Prende-a.

Nas tuas mãos em concha

Fica um instante.



Deixa-a fugir. Outras há.






Por Ruy Cinatti

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010



INSTANTES






«Se eu pudesse viver novamente a minha vida,

na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser perfeito; relaxaria mais.

Seria mais tolo do que tenho sido; na verdade,

Poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiénico.

Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,

subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a lugares onde nunca fui,

tomaria mais sorvetes e menos lentilhas,

teria mais problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente

cada minuto de sua vida; claro que tive momentos de alegria.

Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.

Porque, se não sabes, disso é feita a vida, só de momentos,

não percas o agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termómetro,

uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas;

se eu voltasse a viver, viajaria mais leve.

Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço

no começo da primavera, e continuaria assim até o fim do Outono.

Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres

e brincaria com mais crianças,

se tivesse outra vida pela frente.

Mas vejam, tenho 85 anos

e sei que estou morrendo...»






Atribuído a Jorge Luís Borges
Arte de J. Bosco

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010



A BOSTA É POP






Minha poesia não é pra ser recitada em

Saraus ou Academias de Letras.

É pra ser lida, sentida

No fundo do estômago

No útero, no saco escrotal.

Minha poesia vem das ruas

Avenidas encardidas

Lamacentas

Limo, excrementos

Vômitos esverdeados

De quem tem sede de vida.

Minha poesia não é de métrica

Nem rima rica

A pobreza define e alimenta os versos

Tão indigestos que

Dão azia, caganeira

Larica.

Minha poesia é kirsh

Sem cores de Almodóvar

Tudo em preto e branco

Cadelas e cachorros não enxergam colorido.

Minha poesia é pop.

A Bosta é pop!

Todo mundo faz e

Cada qual a sua maneira.

Mais dura ou mais mole

Depende do que se comeu na véspera.

Minha poesia pode ser diluída

Na cerveja, na cachaça

Na garapa vendida na feira e

Mais dois pastéis

bem grandes

que possam caber perplexidade

e espanto.

Minha poesia está sempre indignada

Aterrorizada

Por tanta genialidade óbvia

Que só vive de conceito

Na pia batismal

Sacramentando o egoísmo e a sordidez;

O olhar míngua ao dar nome

ao próprio umbigo.

Minha poesia está sempre de olhos arregalados

Sem dormir a canção de Drummond

Que Me fez acordar para sempre.

Só a criança em Mim dorme

Porque há mais de um século está morta.

Minha poesia é feita do lixo!

Faz desmoronar o planeta insustentável

Empobrecido pelo ser humano

E seu medo de amar.



Meu poema é o dejeto que não se recicla!






Por Lou Albergaria
Ler mais poesia sua em http://lobaderayban.blogspot.com/
e http://sementedeamora.blogspot.com/