sábado, 26 de fevereiro de 2011



CLAMOR SANITÁRIO






tem caco da minha carcaça por toda cidade

o monturo dos meus membros se amontoa nas ruas do bairro

o chorume desce fétido ladeira abaixo cabelos sangue lágrimas soluços náusea

os lixeiros já avisaram ao prefeito que não há caminhões suficientes

evito sair de casa pra não me deixar por aí

-recolher-me nos meus domínios já é por demais constrangedor-

o que já deixei pelas ruas me excede em centenas de mim

-ao que parece, para o caso, não há como estabelecer limite-

portanto, tenha piedade e desabite de mim



muito agradecida






Por Eugênia Fraietta
Ler mais poesia sua em http://bichodesetecabecas-ge.blogspot.com/
Fotografia de Alyssa Monks

domingo, 20 de fevereiro de 2011



PÁSSARO AZUL NO MEU CORAÇÃO






há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu sou muito durão,

e digo, fica aí dentro,

não vou deixar

ninguém te ver.

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu derramei whisky em cima dele

e inalo fumaça de cigarros

e as putas e os empregados do bar

e os funcionários da mercearia

nunca saberão

que ele se encontra

lá dentro.

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu sou muito durão,

e digo, fica aí escondido,

quer me arruinar?

quer foder o

meu trabalho?

quer arruinar

as minhas vendas de livros

na Europa?

há um pássaro azul no meu coração

que quer sair

mas eu sou muito esperto,

e só o deixo sair à noite

às vezes

quando todos estão dormindo.

e digo, eu sei que você está aí,

por isso

não fique triste.

depois,

coloco-o de volta,

mas ele canta pouco lá dentro,

não o deixo morrer de todo

e dormimos juntos

assim

com o nosso

pacto secreto

e é bom o suficiente

para fazer um homem chorar,

mas eu não choro,



e você?






Por Charles Bukowski
Tradução por jeffvasques

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ouvir Strange Fruit, por Billie Holiday aqui



LIÇÃO






Foi em 1963 ou 4, no Verão,

o meu pai guiava a família

de Forte Hood para a Carolina do Norte no nosso Buick de 56.

Tínhamos ouvido falar dos ataques do Klan, e sabíamos



que o Mississippi se tinha tornado mais perigoso do que o habitual.

A escuridão descia inclinando-se das árvores como faz o musgo

e, nessa noite, quando a luz caiu sobre as janelas,

o meu pai encostou à berma para dormirmos.



Barulhos

que habitualmente não me deixavam adormecer, com medo de monstros,

mantiveram também o meu pai acordado nessa noite

e eu permaneci em silêncio dando conta de que ele estava alerta,

aprendendo que ele poderia não ser capaz de nos proteger



de tudo e de todas as criaturas;

nem talvez da fúria subitamente ruidosa

de todo o meu corpo em relação a esta viagem do Texas

para fixarmos residência antes de ele partir



para um lugar sem lugar no mundo

a que ele chamava Vietname. Um rapaz precisa de um pai

junto de si, eu não parava de pensar, fitando o ruído

que vinha das trevas.






Por Forrest Hamer
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede (http://arspoetica-lp.blogspot.com/)
Música de Billie Holiday
Imagem de J. Michael Skaggs

sábado, 12 de fevereiro de 2011



O POETA É UM ASSUNTO ALÍ NO INVISÍVEL






Esse homem é invisível, a sua matéria de calhandra é invisível,

anda no invisível com passos que produzem ruído nas ruas invisíveis,

come coisas invisíveis, respira o invisível, paga com moedas invisíveis.

O poeta é um assunto ali no invisível, cruza rios invisíveis,

deita-se com mulheres invisíveis, fala com palavras invisíveis.

Está em Dublin e é invisível, vai pelo céu em aviões invisíveis,

no seu coração a melancolia é invisível, pensa em coisas invisíveis,

lê Kavanagh que escrevia livros invisíveis,

por exemplo isto é invisível: My soul is an old horse

offered for sale in twenty fairs*.

A sua fúria é invisível, a sua tempestade também é invisível,

trabalha numa fábrica invisível, gasta os cotovelos em hospedarias invisíveis,

Teillier era invisível, Parra é quase invisível, ninguém viu Rojas.

Os operários brindam no fim do dia com canecas invisíveis de cerveja,

os solitários instalam-se em hotéis invisíveis, falam ao telefone

com raparigas invisíveis, esperam em esquinas invisíveis por outros invisíveis.

No verão a chuva é invisível, abrem então um guarda-chuva invisível,

partem para regiões invisíveis para lerem poemas invisíveis,

encontram-se num parque com alguém invisível, amam o invisível.

O poeta é um assunto ali no invisível, até este poema é invisível,

um espelho é invisível, a cidade em que vivo é invisível,

o imprescindível e o insignificante, isso é o invisível.






Por Alexandra Domínguez
Tradução de Lp, Do trapézio sem rede (http://arspoetica-lp.blogspot.com/)