terça-feira, 30 de março de 2010



SE AO MENOS A MORTE





Ela morria tantas vezes

em tiroteios à porta de casa

que já não sabia morrer para sempre

assim

de uma vez só.

Se ao menos se marcasse um dia

para a morte, uma hora certa

como no dentista

que apesar de tudo

nos faz esperar

onde apesar de tudo

não sabemos quando será a nossa vez.

Se ao menos a morte tivesse revistas

e gente na sala de espera

não estaríamos tão sós

tão vivos nessa ideia final

nesse desconforto.

Poríamos o nome na lista

quando estivéssemos prontos

sabendo que seria fácil desmarcar

marcar para outro dia

ou simplesmente

não comparecer.

Depois, ficaríamos com a dor,

com o terror

de passar sequer naquela rua

como ela à porta de casa.

Ela que morria tantas vezes

porque morria de medo de morrer.





Por Filipa Leal

domingo, 28 de março de 2010



O EDIFÍCIO MAIS ALTO DO MUNDO


(Lewis W. Hine. Soldadores na construção do edifício Empire State. 1930)





O quadro é o da ambição



um pouco afastado o edifício Chrysler assiste vertical

à construção da sua derrota



a cidade pasma-se em toda a sua extensão



e a neblina que paira sobre ela

lembra a da terra na convulsão das suas origens.





Por António Amaral Tavares


INTRODUÇÃO À FILOSOFIA





O que é um nome?, um rosto

levantado com o lume dos dias?,

este lume que arde, arrefece,



nos consome, nos devora os ossos

taciturnos? O que é um nome

cinzelado a fogo?, esculpido



num rio de águas vivas?,

da pulsão das águas ao tumulto

das veias dilatadas, abrasivas?





Por Domingos da Mota
(Ver mais poesia sua e de outros em http://fogomaduro.blogspot.com/)
Quadro de Francis Bacon

sábado, 27 de março de 2010



DA ORDEM INESPERADA


Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.


Paulo Leminski






Dias diversos:

roupa seca no varal

vestindo fantoches sem corpos,

café esfriando na xícara

e dedo nenhum de prosa.



Dias inversos:

no varal não sobra linha,

a roupa mal torcida

escorre a tinta a mancha a nódoa.

Redunda a saliva e também pinga,

onde o sol não, desbota.



Clara de cegar os olhos

a porcelana suja da xícara

espreita pálida a página inaudita

e inaugura invisível

polifonia afinada de vozes.





Por Fernanda Marra
(Mais poesia sua em http://www.mareseressacas.blogspot.com/)
Imagem de AAT


GÊNESE






no dicionário

a palavra vale

o que é




fora dele

cabe ao poeta

o sentido

que a mão lhe dá





Por Luiz Otávio Oliani

segunda-feira, 22 de março de 2010



ULTRAPASSANDO À NOITE UM CAMIÃO
CHEIO DE GALINHAS NA AUTO-ESTRADA OITENTA





O que me apanhou primeiro foi o seu pânico.



Algumas eram atiradas pelo vento provocado pela velocidade

para o fundo das suas gaiolas empilhadas,

outras tinham as cabeças presas entre as grelhas –



e não conseguiam puxá-las de novo para dentro.

Outras apenas suspensas – mortas -,

as penas batidas pelo ar, coagulando



nas suas cabeças. Então

eu vi aquela que me fez abrandar um pouco –

e demorei-me ao seu lado durante cinco milhas.



Ela tinha enfiado a cabeça no espaço

entre as barras – para poder ter uma vista melhor.

Tinha o mesmo aspecto que tem um cão na traseira



de uma carrinha de caixa aberta, esse aspecto ansioso de cão

que sabe que está a ser levado para longe.

Ela estendeu o pescoço.



Olhou em volta, observou-me, depois

esticou-o ainda mais para ver por cima do carro – esticou-o

para ver o que se passava mais além.



Essa é a galinha que eu quero ser.





Por Jane Mead
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede

domingo, 21 de março de 2010



O ESPÍRITO


(Margaret Bourke-White. Gárgula ornamental, edifício Chrysler. 1934)





O retrato parte do alto de um arranha-céus



frágeis são as almas desta cidade

sob o véu redentor da distância



todas irmãs

na luz e nas penas do quotidiano



mais ao longe os edifícios voltam

à fantasia das alturas



são misteriosas as origens

do espírito de uma cidade.





Por António Amaral Tavares
(ver mais poemas desta série em http://vidraguas.com.br/wordpress/)

sábado, 20 de março de 2010



RETRATO DE FAMÍLIA IRAQUIANA





O pai de turbante

e denso bigode negro

com os braços cruzados

À esquerda a sua esposa

com a túnica bordada

e o véu branco

Ahmad e Zainab

os dois filhos pequenos

de mãos dadas

Os avós sentados

em cadeirões de verga

Todos a sorrir

numa fotografia meio chamuscada

encontrada entre os escombros

da sua casa

depois do bombardeamento





Por Óscar Hahn
Tradução de Lp, Do trapézio sem rede


NUMA ESTAÇÃO DE METRO





Desventurados os que avistaram

uma rapariga no Metro



e se apaixonaram de repente

e a seguiram enlouquecidos



e a perderam para sempre entre a multidão



Porque serão condenados

a vaguear sem rumo pelas estações



e a chorar com as canções de amor

que os músicos ambulantes cantam nos túneis



E se calhar o amor não é mais do que isso:



uma mulher ou um homem que sai de uma carruagem

numa qualquer estação de Metro



e resplandece por uns segundos

e desaparece na noite sem nome





Por Óscar Hahn
Tradução de Lp, Do trapézio, sem rede


SÁBADO EM SINTRA





O último pombo,

aquele que continua quando o resto do bando

já anda espalhado pelos telhados,

oculto entre muros,

o solitário em voo picado sobre as praças,

cego pelo sol,

talvez simplesmente mais silencioso do que os outros, indiferente

a esse estúpido cacarejar horizontal,

- enquanto desajeitadamente se perde,

grão a grão, o alimento oferecido -,

aquele que se atira para o vazio

de uma aventura imaginária, uma ameaça,

o medo de um assobio,

e extrai disso o voo e converte o perigo

num jogo de descidas e subidas bruscas,

a fuga para uma insensata corrida com a sombra

rápida da gaivota,

uma sombra que verdadeiramente voa e desaparece,

o pássaro que procura por todo o lado o vento das ruas

e das chaminés, que mergulha no trânsito e deixa

um monte repugnante de penas cinzentas

mesmo ao pé da tampa do esgoto,

não o olhes.





Por Fabio Pusterla
Tradução de Lp, do trapézio, sem rede

sexta-feira, 19 de março de 2010



QUEDA





Nos tropeços do Amor

estão

as melhores pedras



estrelas lapidadas

- raízes -

aos muros dos pés...





Por Carmen Silvia Presotto
(Ver mais poesia sua de outros em http://vidraguas.com.br/wordpress/)
Quadro, A Pedra de Drummond, de Nestor Lampros

quinta-feira, 18 de março de 2010



PRETENSÃO





um dia eu quis muito que a vida seguisse, e ela seguiu.

mas não porque me obedecia.





Por Eugênia Fraietta

quarta-feira, 17 de março de 2010



NOS DIAS TRISTES NÃO SE FALA DE AVES





Nos dias tristes não se fala de aves.

Liga-se aos amigos e eles não estão

e depois pede-se lume na rua

como quem pede um coração

novinho em folha.



Nos dias tristes é Inverno

e anda-se ao frio de cigarro na mão

a queimar o vento e diz-se

- bom dia!

às pessoas que passam

depois de já terem passado

e de não termos reparado nisso.



Nos dias tristes fala-se sozinho

e há sempre uma ave que pousa

no cimo das coisas

em vez de nos pousar no coração

e não fala connosco.





Por Filipa Leal

domingo, 14 de março de 2010

RETRATOS DE NOVA IORQUE:
Inicia-se aqui a publicação de um conjunto de poemas a que se chamou
Retratos de Nova Iorque, com a parceria de Vidráguas, projecto cultural.
O ritmo da publicação será semanal.
Todas as fotografias a que reportam os poemas, pertencem à colecção de fotografia de MoMA, Museum of Modern Art, de Nova Iorque, excepto “Assassinato em Hell`s Kitchen”, pertencente ao arquivo fotográfico de George Eastman House, “Escadas de incêndio em ferro” de que se desconhece a colecção a que pertence e “Pike and Henry Streets”, pertencente à colecção de fotografia de New York Public Library.
Sugere-se ao leitor que descubra na internet as fotografias a que correspondem os poemas, a maior parte delas vem aí publicada. Sob o título de cada poema vêm as indicações do fotógrafo, do nome da fotografia e da data em que foi tirada.


GEOMETRIAS



(Paul Strand. Wall Street. 1915)





Há pessoas que caminham

na direcção do dia que começa



sob o casaco dos pensamentos alinham-se

sombras rectangulares



são vultos

e procuram onde passam a luz preciosa



trazem de casa todo o espaço que podem.





Por António Amaral Tavares
(Ver mais poemas desta série em www.vidraguas.com.br)

sábado, 13 de março de 2010



DIAGNÓSTICO





Rinite Alérgica.



Sintomas:

respiração de gente no fundo do mar sem escafandro;

dor de badaladas nas têmporas,

nos olhos

na testa

e em cima das bochechas;

ressecamento da goela por desvio de função;

aprofundamento e alargamento das olheiras;

aspecto de gente muito bem mais doente;

humor de cão.



Causa provável: ambiente e material de trabalho.



Obs: Quando me lembro de Drummond, sinto que posso folhear processos no ar condicionado para o resto da minha looonga e congestionada vida!





Por Fernanda Marra
(Ver mais poesia sua em http://mareseressacas.blogspot.com/)


A CASA QUE CAMINHA





Esta casa aqui caminha

Esta casa ali caminha

Casa que semeia

Lugar de paz, loquaz

Novos habitantes traz

Sementes que se casam

Nascem versos, poesias

Plantações de algaravias

Amigos de palavras

Cumprimento das letras

Casa que caminha

Casa que aconchega





Por Ivan Bueno
(Ver mais poesia sua em http://www.eng-ivanbueno.blogspot.com/)

sexta-feira, 12 de março de 2010



Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.

Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis

que alagámos de beijos quando eram outras horas

nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse

de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa

ser apenas mais um poema – como esses que eu escrevia

assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu

tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa



que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,

trazem entre as penas a saudade de um verão carregado

de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas

brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores

que perfurem a noite – porque a morte deve ser clara

como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre

me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes

a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me



a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem

toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me

que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos

como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois

os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar

para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando

na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas

que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,

ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.





Por Maria do Rosário Pedreira
Imagem de Casablanca, de Michael Curtiz

segunda-feira, 8 de março de 2010



O DRAGÃO





Semana que vem,

chega-te pelo correio a lua:

puro papelão,

que aos teus dedos

transmutará em louça.



Não fosse a gripe

que me assolou esses dias,

não fosse a preguiça,

os livros e o sono,

eu te mataria um dragão.



Na entrada da tua vila,

deixaria o bicho,

pesado como uma hecatombe

(um hematoma na boca do estômago,

as asas imensas de bomba

imersas numa poça de sangue verde).



Ora, não te assustes,

sei que te acostumei com presentes mais delicados.



Mas não seria preciso guardá-lo:

telefonarias para o Departamento de Limpeza Urbana

avisando que um louco que te ama

deixou um sonho morto

na porta da tua casa.





Por Eucanaã Ferraz


EU, DE MINHA PARTE (2)





dizem por aí que alguém, que desconheço, descansou no domingo

eu, de minha parte, mato todos os leões no domingo

no domingo, todos os fantasmas me assombram

preciso ficar mais alerta exatamente no domingo

no domingo, eu cochilo apoiado no meu fuzil





Por Eugênia Fraietta
Fotografia de Robert Parkeharrison


EU, DE MINHA PARTE





dizem por aí que alguém, que desconheço, descansou no domingo

eu, de minha parte, preparo também a segunda-feira

e estendo roupas no varal





Por Eugênia Fraietta
tributo a Manuel Bandeira
Fotografia de Robert Parkeharrison


ONDE O CÉU ACABA





O céu acaba onde as montanhas

Perfuram o nevoeiro do anoitecer



O céu acaba onde a pintura da natureza

Atravessa o laranja dourado do horizonte



O céu acaba algures entre

As luzes cintilantes da cidade e o vazio do espaço



O céu acaba num lugar onde a tua

Consciência oscila entre a realidade e a beleza



O céu acaba num lugar que é tão magnífico

Que pode ser só imaginação tua





Por Spencer Schenk-Wasson
Imagem por AAT

domingo, 7 de março de 2010



MEU CARO SÁ





Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.



Com dor da gente fugia,
antes que esta assi crescesse,
agora já fugiria de mim,
se de mim soubesse.



Que meo espero ou que fim
do vão trabalho que sigo
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?



Sá de Miranda





ah, sá de miranda, só pensas em fugir…

não queres o perigo de viver contigo,

a não ser no mar tranquilo da concordância.



ah, meu caro sá, assim não dá!

tu te dizes teu próprio inimigo

só porque não concordas contigo?



sá, meu amigo, será tua pergunta, enfim,

a chance de te confrontares e perceberes

que o descaminho é a tua natureza?



que, se é vão fugires do desencontro,

só é possível seguires contigo

atravessado no teu caminho?





Por Eugênia Fraietta
Fotografia de Robert Parkeharrison

terça-feira, 2 de março de 2010



LANDSCAPE





de repente o mundo torna-se

um amplo e claro campo

sem árvores ou coisas ou pessoas.

desconfio que seja mentira.





Por Eugênia Fraietta
Imagem de AAT

segunda-feira, 1 de março de 2010



não sei ao certo

se sou um menino de dúvidas

ou um homem de fé



certezas o vento leva

só dúvidas ficam de pé





Por Paulo Leminski
Quadro de Salvador Dalí


A NOVIDADE É A MORTE



na palavra, nada daquilo, lápide de paixão.

no papel, epitáfios, fendas para novidade.



Eugênia Fraietta





Quando a palavra esgarçou

os músculos entre nós.

Quando a hérnia ameaça romper

os últimos fios do tecido.

Quando traça esburacou

a delicadeza da trama,

Quando o verbo

inocula a doença,

escurece por dentro,

empalidece por fora

e só inaugura a hemorragia.

A novidade é a morte

isso, também, o que a palavra cria.






Por Fernanda Marra
Imagem de AAT