quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Delfim Lopes






VII



Como se não bastasse já
o sol ao ocaso
tal como chapa gasta
ou ouro falso
Não chegasse o seu dinheiro sujo
e vem-me ainda
essa metáfora velha como
uma puta para
fechar o dia com a sua
chave de prata

a lua








quarta-feira, 30 de julho de 2014

Cristina Peri Rossi






Nas mansas correntes de tuas mãos
e em tuas mãos que são tormenta
na nave divagante de teus olhos
de rumo seguro
no redondo de teu ventre
como esfera para sempre inacabada
no vagar de tuas palavras
velozes como feras em fuga
na suavidade da tua pele
ardendo em cidades incendiadas
no sinal único de teu braço
ancorei o meu barco.
Navegaríamos,
se o tempo fosse favorável.



(Tradução de Albino.M.)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Anna Ehre











BOLETIM SUPERLATIVO SOBRE O ESTADO DE CHICO APÓS HELENA





inspira cuidados, ainda que se declare feliz
exames mostram risos largos, medindo semanas
além de uma infestação generalizada de sol  

(como pensar se não for à sombra da dúvida?)

após cair de quatro e chamar girassol de bem-me-quer,
tem a certeza de um raio e nenhum sinal de noite

(como lembrar finais submerso em futuros?)

corre risco de vida em status de alacridade
por negligência ao aviso: “cuidado: profundidade ignorada”

amor é abissal oceano
impossível para os que se afogam em baldes 




arte por Kumi Yamashita 

terça-feira, 22 de julho de 2014

Rui Caeiro






SABEM QUE MAIS?




Sou um homem dado ao álcool e a eternas dúvidas
e que na rua ou lá onde seja a todo o momento pode tropeçar
ou morrer: voar é que é muito mais improvável

Sou um homem de áridas certezas e uma esperança
a essa arrasto-a pela mão pelos cabelos pelas orelhas
paro escuto e olho antes de atravessar

com ela. E não lhe sei o nome. E não me preocupo









Ferreira Gullar





TRADUZIR-SE





Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?



quarta-feira, 16 de julho de 2014

Leopoldo María Panero






MUTIS



Talvez fosse mais romântico quando
arranhava a pedra
e dizia por exemplo, cantando
da sombra às sombras,
assombrado pelo meu silêncio,
por exemplo: «devemos
lavrar o inverno
e existem sulcos, e homens na neve»
Hoje as aranhas fazem-me cálidos sinais dos
cantos do meu quarto, e a luz treme,
e começo a duvidar que seja certa
a imensa tragédia
da literatura.




Paulo Leminski






um poema
que não se entende
é digno de nota

a dignidade suprema
de um navio
perdendo a rota



Arte de Turner

http://meianoitetododia.blogspot.pt/

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Daniel Maia-Pinto Rodrigues






POEMA TIPICAMENTE MASCULINO


Até porque em geral
não estão demasiado connosco
no dia seguinte
não nos deverá desagradar a ideia
de andar com a mulher dos outros


Uma vez imiscuídos em seus lares
achemos excelentes os trens de cozinha
da Filipa Valha-nos Deus.
Adoremos ver repetidamente
a recepção no claustro
e a lua de mel
no vídeo do casamento
do D. Duarte e da Dona Isabel.
E a ideia realmente inteligentíssima
de irem às compras de produtos dois-em-um
levando nos sapatos
as palmilhas do Dr. Metz
atingindo assim um moderno três-em-um
dever-nos-á deixar profundamente apaixonados


A mim
andar com a mulher dos outros
dá-me uma certa satisfação
não digo que não


Resta-me uma dúvida
será dever-nos-á
ou será deveranos
não sei porquê mas dever-nos-á
soa melhorzinho




  

e.e. cummings







já que sentir é primeiro
quem presta alguma atenção
à sintaxe das coisas
nunca há-de beijar-te por inteiro;

por isso ensandecer
enquanto a Primavera está no mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda a flor. Não chores
— o melhor movimento do meu cérebro vale menos que
o teu palpitar de pálpebras que diz

somos um para o outro: então
ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo


E a morte julgo nenhum parêntesis


http://meianoitetododia.blogspot.pt/

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Manuel António Pina






O REGRESSO




Como quem, vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho.

Entra então pela primeira vez na sua casa
e deita-se pela primeira vez na sua cama.
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.





http://hospedariacamoes.blogspot.pt/

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Rui Pires Cabral







CONSERVE ESTE BILHETE ATÉ AO FINAL DA VIAGEM




Devo dizer que sempre preferi
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.

Luís Filipe Parrado



ESCREVER DEPOIS DE UM DIA DE TRABALHO ÁRDUO



Já não há maçãs
nem laranjas na fruteira

e o cesto do pão
está irremediavelmente vazio.

Ainda assim
escrevo,

ainda assim,
depois de um dia de trabalho árduo.

Depois de um dia de trabalho árduo
os poemas são de pele e osso

e parecem-se estranhamente
com listas de compras,

pão, laranjas,
maçãs,

coisas escritas à mão,
coisas de que precisamos para viver,

coisas em que pensamos só
quando nos fazem falta.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

ÁRVORE DA ESPERANÇA, MANTENHA-SE FIRME!




Este não é um poema sobre trigo

Este não é um poema sobre um útero transpassado
não é um poema sobre fraturas
nem sobre a dor que desenha cores impossíveis

Este não é um poema sobre Frida Kahlo
Este não é um poema até o enterrarmos
até cada um dos nãos, sementes mortas, germinar um pássaro

Este é um poema sobre pão




Por Anna Ehre

Arte por Edmundo Simas





Abriu no colchão as valas possíveis
e enterrou por ordem alfabética
cada parte do corpo: os pêlos
os pântanos as unhas encravadas
e as unhas que outros cravaram pelas coxas.
Estudou cuidadosamente as ondas as horas
para que não restassem dúvidas
sobre os caminhos marítimos
para a noite. Por fim
podou as janelas do quarto,
bebeu o vinho;
roeu a carne do quarto
até não sobrar nenhum coração.





Por Catarina Nunes de Almeida
Arte de Edward Hopper

segunda-feira, 28 de abril de 2014






ARTÉRIA, TU TENS RAZÃO




A única coisa que eu aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi

Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.

Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.

Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso

Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.

Quem olha descontenta.




Por António Gancho

Imagem de “A Mosca” de David Cronenberg

quinta-feira, 3 de abril de 2014








DISCRETA NATAÇÃO



Tudo sempre coincidiu
para lá de toda a coincidência

Dizias, eis as lágrimas
e havia chuva ou uma faca de
luz dentro dos olhos

Ficavas calado no jardim
para que usassem pássaros
o teu silêncio
Afinavam pela rouquidão terrestre
quando as folhas imitavam o ar
desenhando o vento inteiro

Entretanto, elaboravam as nuvens
castelos de que fugiam, esse modo
de apenas desaparecerem no mar

A mesma água oferecia o brilho dos peixes
e a discreta natação dos afogados




Por José Manuel Teixeira da Silva

quarta-feira, 2 de abril de 2014







[Morro do que há no mundo]





Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.


por Cecília Meireles

sábado, 15 de março de 2014







CIDADE DOS DESAPARECIDOS





Muitas vezes não amei Lisboa,
não soube amá-la ao anoitecer
dos dias úteis, quando era gasta,
parada e suja, e nos autocarros
quase vazios viajava de luz acesa
a entranhada tristeza do mundo
que foi a minha primeira e mais
precoce intuição. Grande cidade
dos desaparecidos, eu não tive
tantas vezes a saúde de gostar
dos teus pequenos jardins
abandonados. Quando nos cafés
já iam desligando as máquinas
e do outro lado da linha ninguém
voltava jamais a responder
como eu queria, quantas vezes
não pude achar o sítio e o sossego
para esquecer e dormir? Mesmo assim,
eu não te fiz justiça, Lisboa, quando
me deixei de ti: eu não era exemplo,
eu sempre estranhei um pouco a cama
da vida.





Por Rui Pires Cabral


quinta-feira, 6 de março de 2014






Ars Magna

para o Clemen, com um arrepio



O que é a magia, perguntas
num quarto escuro.
O que é o nada, perguntas,
ao saíres do quarto.
E o que é um homem a sair do nada
e a regressar sozinho ao quarto.











Por Leopoldo Maria panero