terça-feira, 31 de agosto de 2010



A DOR NEGRA






o negro é o espirrar do sangue de cada dia

o negro é também a cor peculiar das máquinas de ferir

e a dor é um gozo negro



o negro é a mancha queimada de óleo humano sobre
a terra

é o óxido de cansaço espesso nos olhos dos gatos

e a dor é o miado cortado na escuridão



na corrente de fogo

na cinza dos dedos velhos no asfalto

na cabeça cortada da criança no caminho



a dor negra

também é todo este fumo

enquanto a parede respira com pulmões de ferro






Por Ahmed Barakat
Tradução de André Simões

segunda-feira, 30 de agosto de 2010



LIXEIRO






Pendurado num camião do

lixo atravessas a cidade



de bairro em bairro de rua

em rua de beco em beco



com as luvas de protecção e

o colete fluorescente. Conheces



como ninguém o cheiro

a azedo e a vomitado...



Não te surpreendas se um dia

destes descobrires um coração



ainda a sangrar embrulhado

num saco de supermercado






Por Jorge Sousa Braga

domingo, 29 de agosto de 2010



"NÃO TENHAS CONFIANÇA NA TUA JUVENTUDE."


Para o Manuel de Freitas






Noites de tabaco com resina

de Marrocos, pequenos quartos



onde a música era enorme.

As ruas pulsavam, eram coisas



mortais, o pensamento um carrossel

de monstros vivos. E nós os únicos,



os mais sós, os mais relapsos

no caminho que descia do devaneio



à angústia. Esquecidos das horas

num qualquer degrau perdido,



o futuro era aterrador: it will end

in tears. E tudo o que sabíamos



estava errado, menos isso.






Por Rui Pires Cabral

quarta-feira, 25 de agosto de 2010



Teus olhos pertubaram-se

Ou foram as estrelas?

Teus augúrios afundaram-se

Ou, quanto a esperanças,

Não há lugar para elas?

Achas então que cheguei ao fim?

Antes falavas com respeito,

Em voz baixa. Nunca assim!

Forçavas-te a escrever,

Me prestavas preito.

Agora, não escreves nem me queres ver.

Escondem-se acaso de ti as estrelas,

Virgo e Leo. Será que por ser

Falso o que dizes estás de mal com elas?

Ser rei não é eterna condição

Só a morte representa a duração.






Por al-Mu'tamid (1040 - 1095)
Tradução de Adalberto Alves

sábado, 21 de agosto de 2010



Estou olhando os frutos repousados

e as pequenas sombras alongadas

sobre a mesa de madeira e pedra.

A brisa entra por uma porta antiga.

Uma pétala branca cai de uma flor branca.

Sou, mais do que sou, estou

na perfeição das coisas que me envolvem.

Repouso na sinuosa exactidão.






Por António Ramos Rosa
Arte por Tarsila do Amaral


O MEDO






Surgiu

Por detrás

Da nuvem escura

Que tapou a lua.

Escorregou

Sobre a planície,

Negro,

Envolto

Em longas Chamas.

Era meu.

Pertencia-me.

Era o medo.






Por Maria Amélia Neto

sexta-feira, 20 de agosto de 2010



MORTE DE CLARICE LISPECTOR






Enquanto te enterravam no cemitério judeu

do Caju

(e o clarão do teu olhar soterrado

resistindo ainda)

o táxi corria comigo à borda da lagoa

na direcção de Botafogo

as pedras e as nuvens e as árvores

no vento

mostravam alegremente

que não dependem de nós






Por Ferreira Gullar
Arte por Van Gogh

domingo, 15 de agosto de 2010



A (CIDEN) TAL FELICIDADE





poeira fina

talvez purpurina

que se tem à mão



de que só se apercebe

aquele que a vê

pender ao chão





Por Renata de Aragão Lopes
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AMAZONA





Jamais adia

sim ou não.

Repudia

a dúvida.

Prefere

precitpitação

a inércia.

Ainda que tropece.



Até quem a conhece

lhe diz insana.

Mas se a julga

infeliz

se engana.

A vida, curto intervalo.

Alguns vão a pé.

Ela segue a cavalo.





Por Renata de Aragão Lopes
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terça-feira, 10 de agosto de 2010


Esta é uma das versões da sequência de apresentação do filme Watchmen, de Zack Snyder, aqui com música de Bob Dylan. A não perder, aqui






XXV





Raivosos, atiraram-se contra a sombra

dumas acácias que por ali havia,

o corpo dorido de tanto desejar.

Olharam em redor, ninguém os vira,



A terra era de areia, a sombra dura,

também a carne endurecera

e secara a boca, só os olhos

tinham ainda alguma água fresca.



Os dedos cegos foram os primeiros

a rasgar, ferir, e logo os dentes

morderam, nem sequer

ao sexo deram tempo de penetrar.



Eram muito jovens; a terra não,

a terra estava exausta,

o coração mordido pelas vespas,

só queria morrer.





Por Eugénio de Andrade
Fotografia por Kindian

domingo, 8 de agosto de 2010



AMOR DE RENDIÇÃO





Se te sou motivo

de desagrado,

porque vivo

a te pedir

palavras

de apaixonado,

porque te manténs,

com tantos poréns,

enfim,

ao meu lado?



É assim

que amo

e bem conhecias

esses meus modos

de século antepassado:

o apego às poesias,

o apreço pelo fado,

o sossego das mãos

em repouso

no avesso do bordado.



Vazias,

mas sempre ao aguardo

de um afago

mais que querido,

tido por inesperado,

que te ponhas

a meus pés

rendido

e em minhas fronhas

enamorado…





Por Renata de Aragão Lopes
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Arte de Alfred Chantrey Corbould

terça-feira, 3 de agosto de 2010



AO RÉS





O quão rés ao chão estou

Se minha cabeça flutua no alto

Carregando pensamentos e ideias?



Alguns eclipsados,

Outros a fulgurar como estrelas.



O quão alto voo eu-mente,

Enquanto corpo grudado à terra,

Enquanto vida grudada ao corpo?



Eclipse da liberdade

Grade pintada de transparente.





Por Ivan Bueno
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Fotografia de Ivan Bueno

domingo, 1 de agosto de 2010


PARA S. QUE SE INTERROGA SE EU ME ALEGRO MUITO COM A VIDA





Por acaso, sim.

Contemplo , com certa

satisfação amarga

homens dinâmicos que vendem a melhor manteiga.

Por vezes implacavelmente

engulo uma coca-cola no Taj.

Esta manhã aterrorizei

(com sucesso)

o gerente do banco.

Estou fascinante de vermelho e negro

e com um colar de caveiras.





Por Eunice de Souza

Tradução de Ana Luísa Amaral

Música e Interpretação de Rolling Stones