sábado, 27 de outubro de 2012










Como acordar sem sofrimento?
Recomeçar sem horror?
O sono transportou-me
àquele reino onde não existe vida
e eu quedo inerte sem paixão.

Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,
a fábula inconclusa,
suportar a semelhança das coisas ásperas
de amanhã com as coisas ásperas de hoje?

Como proteger-me das feridas
que rasga em mim o acontecimento,
qualquer acontecimento
que lembra a Terra e sua púrpura
demente?
E mais aquela ferida que me inflijo
a cada hora, algoz
do inocente que não sou?

Ninguém responde, a vida é pétrea.





Por Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 26 de outubro de 2012








LITERATURA E REVOLUÇÃO

  



Quando o chefe da polícia Ángel Martínez enfia o cano
do seu revólver no ânus do prisioneiro nu
e a imagem se torna nojenta, patética e cheia de sangue,
que importância tem para o jovem torturado
se o poeta é um fingidor, como disse Pessoa?
Alguma vez G. K. Chesterton visitou La Salve?
Há alguém nas celas de Intxaurrondo que conheça
Hermann Broch?
Quando está, totalmente destruído, diante do juíz,
como poderá o jovem torturado explicar
o significado de correlativo objectivo?
Como poderia Molly Bloom compreender um nascer do sol
tricotado com agulhas na prisão de Carabanchel?
Quem é Michel Foucault para o homem que passa dez meses
a definhar numa cela?
Uma visita de cinco minutos? Uma descoberta lírica?
Será que os presos estudam a Bíblia Basca de Jean Duvoisin
para terem a certeza de que as vírgulas e os agás das suas
cartas proibidas estão correctos?
Haverá, para a literatura, um valor ético inerente
na rebelião, na revolução e na coragem? Ninguém o diz.
Alguma coisa se escreveu em revistas literárias como
a Voprosi Literaturi ou a Tel Quel sobre
as longas greves de fome dos presos bascos?
Como pode preocupar-se com o compromisso o rapaz
que foge, esquivando-se às balas da polícia, o seu coração
desnudo uma bandeira revolucionária?






Por Joseba Sarrionandia
Tradução de Luís Filipe Parrado

quinta-feira, 25 de outubro de 2012








ERAM DE LONGE





Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados. 





Por Eugénio de Andrade
Arte de Thomas Moran

quarta-feira, 24 de outubro de 2012








A ÁRVORE QUE NINGUÉM VISITA





Então eu fui. Uma tarde subi
Aquela colina íngreme e rochosa,
Parando para descansar e admirar uma flor silvestre
E a vista do lago
No vale lá em baixo.

Teria gostado de uma cabra por companhia.
Uma preta e branca, com um sino
Para ir à frente, pastar um pouco e romper
O silêncio quando este retoma sua ascensão
Até onde uma árvore escura e silenciosa está

Esperando todos estes anos que alguém
Se sente à sua sombra, em calma consigo mesmo.
Até o vento está sempre a inventar
Joguinhos para as suas folhas brincarem,
Sem pressa agora de perturbar a paz.








Por Charles Simic

terça-feira, 23 de outubro de 2012







ODE À NOITE (INTEIRA)




Gosto do momento, exacto ou nem por isso,
em que se torna possível colar cartazes
nas paredes ao lado dos meus ombros (espero
o autocarro, vejo devagar, sorrio). Mas
gosto, sobretudo, dos cães quase sem dono
que roçam as esquinas, pisando restos de garrafas
- ou das pessoas que desconheço
e das bebidas todas que ignoro
(porque me matam menos e se chamam
- como eu - insónia, pesadelo, golpe baixo).

Existem, claro, raparigas louras um tanto
heterodoxas que não te apetece beijar
(a forca do bâton, perfeita - o cigarro aceso
pedindo outro lume). Essas mesmas que hão-de
um dia procriar com zelo, evitando rugas,
tumores e o mundo como representação misógina.
Mais lírica, sem dúvida, é a lavagem das ruas,
com a cerveja a premiar a farda
demasiado verde e os bigodes de serviço.

Outros, alguns, tornam concreto o torpor
de um charro e pedem-te em crioulo básico
um cigarro português que tu vais dar,
sem esforço nem palavras. Entre shots, piercings,
t-shirts de Guevara e gel, podes não acreditar
por algumas horas no axioma frágil do teu corpo.
Esfumas-te, como eles, no espelho de um bar
qualquer, país de enganos e baratas. E
quase gostas disso, quase: a música de punhais,
servil, um certo e procurado desencontro.
Um táxi te ensinará depois o caminho de casa
- ou o seu contrário, pois só ali (anónimo
e desfocado) eras finalmente tu, ou podias ser.

O resto, a vida, fica para outra vez.




Por Manuel de Freitas











UM HOMEM E UMA PORTA

  



Um homem carrega uma porta
pela rua fora.
Procura a sua casa.

Ele sonhou
com a mulher, filhos e amigos,
a entrarem através daquela porta.
Agora vê o mundo todo,
a entrar através da porta
da sua casa ainda por construir:
homens, veículos, árvores,
animais, pássaros, tudo.

E a porta, o seu sonho
erguendo-se acima da terra,
anseia ser a porta dourada do paraíso.
Imagina nuvens, arco-íris,
demónios, fadas e santos
passando através dela.

Mas é o senhor do inferno
quem guarda a porta.
E agora deseja apenas ser uma árvore
cheia de folhas,
ondulando na brisa,
para providenciar alguma sombra,
ao seu carregador sem abrigo.

Um homem carrega uma porta
ao longo da rua.
Um homem e uma estrela.




Por K. Satchidanandan
Tradução de Jorge Sousa Braga

domingo, 14 de outubro de 2012


















UMA SAISON NOS INFERNOS









Tudo é breve: um deus,

o plâncton, o ferro.



O meu poema é uma miséria

comparado com o teu nome

no edital.



A voragem dos grandes estúdios,

a saída dos operários da fábrica,

a grande depressão

dos trinta anos:



Eu bebo

porque se não beber

não conduzo

este corpo a casa.







Por Daniel Jonas

sábado, 13 de outubro de 2012










PREOCUPAÇÕES NATURAIS




Eu não tinha muita coisa e hoje tenho
a soma dos teus passos quando desces
a correr os nossos treze degraus e
me prometes: até logo. Mas se
nada (ou só o nada) está escrito,
quem mais ama é quem mais tem
a recear. Com isso, passo horas
num rebate de dramáticos motivos:
engano-me na roda dos temperos,
ponho sal na cafeteira, maionese
no saleiro, vejo o mel mudar de cor
e se me chama o telefone empalideço
como o rosto do relógio da cozinha.
Só sossego quando as gatas me garantem
que chegaste e posso então, aliviado,
unir-me ao coro de miaus que te recebe,
para mais uma noite roubada ao escuro.





Por José Miguel Silva

sexta-feira, 5 de outubro de 2012










TEORIA DA NARRATIVA FAMILIAR




Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.




Por Luís Filipe Parrado