quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010



LARGO DO PENEIREIRO



[para a Inês]





Tudo se perde, claro. Mas lembrarei

seguramente os olhos vermelhos

de um gato de Alfama e todos os poemas

que não escrevi contra mim próprio,

naquele pátio aberto a ciladas e dissipações.



Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas

num diálogo de guitarras desatentas.

Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,

e dizias com maior razão que aqueles olhos na noite

pertenciam a uma gata. Perdida, achada luz,



quando se percebe o desabrigo, a difícil

pertença a esta espécie de gente,

comunidade de loucos deserdados a que

o empregado, de bigode, chamou

«o pessoal da bebedeira». Porque isto

que não passa, sabemo-lo bem, é a vida



ou a morte, uma perda que dura

e que não se apaga assim, sob um cerco

de navalhas ou de inúteis, vigorosos

sentimentos. Por exemplo o amor,

essa estranha mistura de angústia, desejo

e novamente angústia. O não apenas sexo

de adormecer em braços reais

que afastem para sempre o mundo.



Mas acabo por subir cambaleante as escadas

à hora em que o vizinho de baixo

se prepara para ser uma pessoa altamente

honrada, no talho de baixo

que lhe dá sentido aos dias.



E não é dor, nem prazer, nem

ressentimento o que um corpo

sente, às seis da manhã, prostrado

na lama involuntária destes versos.

Antes um vazio imperfeito, uma

ferida sem lugar que nenhuns lábios,

sequer os teus, saberiam calar.



Fizeste, já disse, vinte e quatro anos.

Não esperes grande coisa da felicidade.





Por Manuel de Freitas
Fotografia de Robert Parkeharrison

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