segunda-feira, 17 de maio de 2010



1952-2001





Sabes, Miguel? Tu não foste um morto

rentável, desses sobre quem muitos

depois escrevem prantos rimados

e apressados encómios. Não tiveste amigos

desses. Ainda bem. Faltou-te em obra

(escrita e publicada) o que ao fim da noite

te sobrava de vida – coisa tão pouco afim

de carpideiros que ignoram com devoção

a morte de que não morrem.



Não faz mal. Eu lembro-me:

dos copos quase adolescentes que trazias

nos bolsos à saída de bares na moda

ou daquele “poema” que gostarias de ter escrito

num computador portátil, só porque

um poeta – sim, o Fernando – te quis honrar

em vida o nome. O Zé estava lá, sorria,

e concordará talvez que esses gestos sem futuro

têm mais poesia do que tantas e prefaciadas

obras reunidas que fazem das livrarias

bordéis de pouca alma, hipóteses de terror.



Gente que escreve bem, admito,

merceeiros do sublime que ocasionalmente

te apertaram a mão nos engalanados

salões da cultura. Boa gente…

Eu, mais de fora, pouco tenho a dizer.

Eram antes roulottes, discotecas tristes,

o sorriso de álcool com que a manhã tomba

sobre nós e se despede para sempre.



O teu carro era veloz, tornava pequena

e sórdida a vinte e quatro de Julho.

demasiado veloz, o teu carro, a notícia

sem rasura que chegou de noite

ao silêncio dos corações disponíveis.



Não faz mal. São coisas que acontecem

a “esses gajos da noite”. Pois, sabemos muito

bem: a morte, essa certeza improvável.

Bebemos, claro, e fingimos que o nome

dos mortos se apaga na euforia

baça com que os dias se sucedem.

Também temos, por enquanto, uma razão

precária e urgente para fingirmos e ficarmos.

O que é muito humano – e um pouco desprezível.



Só nunca saberei o que me querias dizer

sobre Blanchot, l’entretien (in)fini. Não esperei

que regressasses do carro, com o livro anotado,

e o último copo parece-me agora

uma despedida incompleta, um rasto de cinza

que tinge de mágoa o balcão a que me encosto.



Deus, Miguel, é esse estafermo iletrado

a quem nunca dedicaste um verso. Fizeste bem.





Por Manuel de Freitas

1 comentário:

  1. "A morte esta certeza improvável", certamente, dá o que pensar e, por sorte, escrever...

    Um beijo

    Carmen Silvia Presotto. Vidráguas!

    ResponderEliminar

fale à vontade