1952-2001
Sabes, Miguel? Tu não foste um morto
rentável, desses sobre quem muitos
depois escrevem prantos rimados
e apressados encómios. Não tiveste amigos
desses. Ainda bem. Faltou-te em obra
(escrita e publicada) o que ao fim da noite
te sobrava de vida – coisa tão pouco afim
de carpideiros que ignoram com devoção
a morte de que não morrem.
Não faz mal. Eu lembro-me:
dos copos quase adolescentes que trazias
nos bolsos à saída de bares na moda
ou daquele “poema” que gostarias de ter escrito
num computador portátil, só porque
um poeta – sim, o Fernando – te quis honrar
em vida o nome. O Zé estava lá, sorria,
e concordará talvez que esses gestos sem futuro
têm mais poesia do que tantas e prefaciadas
obras reunidas que fazem das livrarias
bordéis de pouca alma, hipóteses de terror.
Gente que escreve bem, admito,
merceeiros do sublime que ocasionalmente
te apertaram a mão nos engalanados
salões da cultura. Boa gente…
Eu, mais de fora, pouco tenho a dizer.
Eram antes roulottes, discotecas tristes,
o sorriso de álcool com que a manhã tomba
sobre nós e se despede para sempre.
O teu carro era veloz, tornava pequena
e sórdida a vinte e quatro de Julho.
demasiado veloz, o teu carro, a notícia
sem rasura que chegou de noite
ao silêncio dos corações disponíveis.
Não faz mal. São coisas que acontecem
a “esses gajos da noite”. Pois, sabemos muito
bem: a morte, essa certeza improvável.
Bebemos, claro, e fingimos que o nome
dos mortos se apaga na euforia
baça com que os dias se sucedem.
Também temos, por enquanto, uma razão
precária e urgente para fingirmos e ficarmos.
O que é muito humano – e um pouco desprezível.
Só nunca saberei o que me querias dizer
sobre Blanchot, l’entretien (in)fini. Não esperei
que regressasses do carro, com o livro anotado,
e o último copo parece-me agora
uma despedida incompleta, um rasto de cinza
que tinge de mágoa o balcão a que me encosto.
Deus, Miguel, é esse estafermo iletrado
a quem nunca dedicaste um verso. Fizeste bem.
Por Manuel de Freitas
Sabes, Miguel? Tu não foste um morto
rentável, desses sobre quem muitos
depois escrevem prantos rimados
e apressados encómios. Não tiveste amigos
desses. Ainda bem. Faltou-te em obra
(escrita e publicada) o que ao fim da noite
te sobrava de vida – coisa tão pouco afim
de carpideiros que ignoram com devoção
a morte de que não morrem.
Não faz mal. Eu lembro-me:
dos copos quase adolescentes que trazias
nos bolsos à saída de bares na moda
ou daquele “poema” que gostarias de ter escrito
num computador portátil, só porque
um poeta – sim, o Fernando – te quis honrar
em vida o nome. O Zé estava lá, sorria,
e concordará talvez que esses gestos sem futuro
têm mais poesia do que tantas e prefaciadas
obras reunidas que fazem das livrarias
bordéis de pouca alma, hipóteses de terror.
Gente que escreve bem, admito,
merceeiros do sublime que ocasionalmente
te apertaram a mão nos engalanados
salões da cultura. Boa gente…
Eu, mais de fora, pouco tenho a dizer.
Eram antes roulottes, discotecas tristes,
o sorriso de álcool com que a manhã tomba
sobre nós e se despede para sempre.
O teu carro era veloz, tornava pequena
e sórdida a vinte e quatro de Julho.
demasiado veloz, o teu carro, a notícia
sem rasura que chegou de noite
ao silêncio dos corações disponíveis.
Não faz mal. São coisas que acontecem
a “esses gajos da noite”. Pois, sabemos muito
bem: a morte, essa certeza improvável.
Bebemos, claro, e fingimos que o nome
dos mortos se apaga na euforia
baça com que os dias se sucedem.
Também temos, por enquanto, uma razão
precária e urgente para fingirmos e ficarmos.
O que é muito humano – e um pouco desprezível.
Só nunca saberei o que me querias dizer
sobre Blanchot, l’entretien (in)fini. Não esperei
que regressasses do carro, com o livro anotado,
e o último copo parece-me agora
uma despedida incompleta, um rasto de cinza
que tinge de mágoa o balcão a que me encosto.
Deus, Miguel, é esse estafermo iletrado
a quem nunca dedicaste um verso. Fizeste bem.
Por Manuel de Freitas
"A morte esta certeza improvável", certamente, dá o que pensar e, por sorte, escrever...
ResponderEliminarUm beijo
Carmen Silvia Presotto. Vidráguas!