sábado, 18 de setembro de 2010


PRESSA DE VIVER


( para o Zé, que nunca lerá este poema)






Negro , trinta e dois anos,

dealer. Pensava que a guerra

no Kosovo tinha por motivo único

a resistência à conversão em euros

- e talvez nisso tivesse, afinal, uma obscura

razão. Noutra noite, vi-me obrigado

a explicar-lhe o melhor que pude

o que era o FMI – que ele decerto

interpretou como um partido de ‘tugas

vagamente hermético. De facto, é outra

a sua economia: contos de xamon, pastilhas,

piropos de esquina, os dois ou três filhos

de que apenas bêbedo se lembra.



Mas não é bem disso que eu hoje

queria falar. Passámos a noite

lado a lado, no mesmo balcão.

Demorei algum tempo a cumprimentá-lo

- “tá-se?”. Pediu logo grandes, imensas

desculpas por não me ter visto.

Que era “pressa de viver”, garantiu-me,

aquilo que nos torna tão cegos

às evidências, ao rosto desse próximo

que só por bíblico acaso amamos

- quando o ódio, mais discreto,

dá nome e sentido às ruas.



Fingi acreditar, procurei não

desmentir o seu olhar verde

vindo de outro qualquer planeta.

Seria difícil explicar-lhe àquela hora

a compulsiva demora de morrer

que me faz sair de casa e procurar,

entre ninguém, a pior das companhias: eu.



Acabou por levar para a rua

uma imperial de plástico, lembrado

talvez dos possíveis clientes

a quem ajudará a esquecer um emprego,

o desamor, o calor sinistro deste Verão.

Na verdade, pouco mais haveria

a dizer sobre este corpo brando que

há vários anos se encosta às minhas noites.

Serve-me de escudo para os bárbaros mais novos

- e protege-se, o melhor que pode,

da rusga sem objecto a que chamamos vida.






Por Manuel de Freitas
Música e interpretação de Velvet Underground

1 comentário:

  1. António, que nunca nos falte Poesia ao ódio mais discreto que dá nome e sentido às ruas.

    Um beijo.

    Carmen Silvia Presotto

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