domingo, 29 de janeiro de 2012















um poema de "o escaravelho do descalabro",
gentilmente cedido pela poetisa




os poetas não me lêem não quem me lê
são os passarinhos e as florzinhas nos campos
que me lêem sim e os peixinhos no riacho
ai sim e os peixinhos no riacho que contam
para os caramujos que boa poetisa eu sou
ai sim e os caramujos que entram
na tubulação e anunciam minha glória
na cloaca municipal
ai sim quem me lê são os bichinhos
são os paramécios são os e.coli
e os seus semelhantes




Por Angélica Freitas

sábado, 28 de janeiro de 2012

















VALVA









nasciam os pêlos


da perna e as partes


seletas daí nicotina


e a lanugem grudarem


nos beijos



cravaram o solo


na tarde cataram


uns frutos queriam


apenas sementes


calafetar junturas


- os dois inteiros










Por Lígia Dabul
Fotografia de António Cravo

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012











COISAS DE PARTIR




Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo,
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.




Por Ana Luísa Amaral
Arte de Edward Hopper 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012









Atenção a todos os interessados:
Vai acontecer em Coimbra, nas instalações do CES, um curso de escrita criativa, com a duração de dois dias, 17 e 18 de Fevereiro, onde vão estar presentes duas poetas de renome: Ana Luísa Amaral e Lígia Dabul, vinda do Brasil.
Para mais informações e inscrição deverão consultar a página do CES, na internet, em Formação Avançada, ou aqui.
Informa-se ainda que haverá um número limite de inscritos.

domingo, 22 de janeiro de 2012









EMPRÉSTIMO




      Empresto a face
      ao espelho: reflito
     
a tez
os olhos
o nariz
a barba mal feita.

                 Sou ausência consentida.




Por Pedro Du Bois







ELEGIAZINHA
[i. m. nikita (gata da Inês)]




Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.





Por Nelson Ascher

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012











DEPOIS ESVAZIOU-SE COM CUIDADO





Não dormia sem o escuro absoluto.
Doíam-lhe os olhos de ter visto cidades,
de ter esquecido gente, do frio
do vidro nas palavras. Demorava tanto
a entender o mundo que agora não dormia
de muita luz que as coisas tinham
antes sequer de serem suas. Trabalhava-se tanto
nesse lugar onde vivia com outros como ela
que às vezes pensava: tão estranho nascer
(quer dizer, nascer mesmo, estar aqui)
para o dia passado com estranhos.
E por isso, no princípio, não dormia
sem procurar o amor, sem beijar na testa
a noite que acabava serena e exausta como a noite.
No princípio era.
Depois esvaziou-se com cuidado.





Por Filipa Leal

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012











(Antes de vir, por dias me rondei. Era medo. Do desencontro, talvez.)

Choveu, escutam-se as rodas nervosas no asfalto molhado e, nos entremeios, um silêncio gordo que é uma espécie de zumbido que se desenha em espirais.
Pergunto-me quem são e se acaso já olharam a noite de frente. Eu não. Espreito-a e temo e cobiço. E é a ela que vendo a minha intimidade.
E pressinto-a. A tristeza em mim não é sentida, é pressentida, entendes isso?
A noite. Tal como a música, entra-se em mim e entranha-se e quando o dia romper no alvoroço de uma luz muito branca, talvez persista ainda o desajuste.
O sono é o remedeio. Mas às vezes, até aí a lucidez se vence. E então abro os olhos e há um corpo deitado a meu lado. E então os olhos ardentes fixam as órbitas vazias de um olhar assombrado. É o medo.




Por Elisabete Albuquerque

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012











À PESCA NO SUSQUEHANNA EM JULHO





Eu nunca andei à pesca no Susquehanna
ou em qualquer rio do mesmo género
para ser completamente honesto.

Nem em Julho, nem noutro mês
tive o prazer - se for um prazer -
de pescar no Susquehanna.

Sou mais do tipo de ser encontrado
numa sala sossegada como esta -
uma pintura de uma mulher na parede,

uma cesta de tangerinas sobre a mesa -
tentando compor a sensação
de pescar no Susquehanna.

Não restam muitas dúvidas
de que outros tenham pescado
no Susquehanna,

remando contra a corrente num bote de madeira,
mergulhando os remos na água
e levantando-os depois para gotejarem na luz.

No entanto, o mais próximo que estive
de pescar no Susquehanna
foi uma tarde num museu em Filadélfia

enquanto segurava um pequeno ovo do tempo
em frente a uma pintura
na qual esse rio se enrolava em volta de uma curva

debaixo de um céu azul e franzido com nuvens,
árvores densas ao longo das margens,
e um homem com um lenço vermelho

sentado num pequeno bote verde
de fundo raso
segurando a linha fina de uma cana.

Isto é algo que eu provavelmente
nunca farei, lembro-me de ter dito
a mim próprio e à pessoa que ali estava.

Depois pisquei os olhos e avancei
para outras paisagens americanas
de pilhas de feno, águas claras entre rochas,

até uma de uma lebre castanha
que parecia tão tensa e alerta
que eu imaginei que iria saltar da moldura.






Por Billy Collins
Tradução de Lp, Do trapézio sem rede

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012












31/12



Ano que vem teremos dores de cabeça,
enxaquecas intensas ao fim do dia.
O trânsito sujará nossas bocas
e uma gripe nos acompanhará por uma semana.
Uma topada encontrará nossos pés
e um grito irá disparar nossos lábios. Algumas vezes.
Ficaremos indignados com o congresso e as esquinas
que despejam bossais e um demente alto-falante.
Nossa equipe não será campeã,
nem viajaremos a ilha de Patmos.
No cinema haverá adolescentes que não lêem dicionários.
No banco, filas sem respeito à ordem e à gentileza.
Trovejará no feriado e acordaremos com sono.
Ano que vem nem tudo dará certo,
nem todos os afetos serão correspondidos.
A raiva tingirá nossos rostos por um momento e,
no outro, as decepções cairão sobre os pés.
Ano que vem nem tudo será novidade.
Exceto o antigo costume de no último dia
escrevermos a palavra feliz 
e desejarmos, felizmente, tudo (de) novo.





Por Anna Ehre
Fotografia de Dan Weiner

domingo, 8 de janeiro de 2012










NOSTALGHIA




Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encadeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morno da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o seu nome,
riscavas outro fósforo –
ele avançava dentro de ti,
nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em pleno Verão.








Por Inês Dias
imagem do filme Nostalghia, de Andrei Tarkovsky

domingo, 1 de janeiro de 2012













Era o matraquear de saltos agudos contra o mármore da escadaria. Insolente, contra a ternura dos pianíssimos que se escapavam pela soleira do apartamento do primeiro direito posterior. E eu sei, porque me aproximei como um ladrão e senti os frémitos na ponta dos dedos. Ali, a música nascia, ali o útero.
Ou então a música soou dentro, pelas mãos fantasmas de um ser gentil que te seguraria a alma em momentos. Alma é uma palavra tão gasta, mas continua a sair-me dos dedos como um sonho cansado. São patranhas ridículas ou nasceste mesmo para desejar cinco quartos de lua e não menos?
Descalçou os sapatos de saltos agudos e despiu os pés em passos etéreos. E subiu-se à ponta dos dedos, justamente como fazia nas aulas de dança, e ficou mais perto, de uma altura de deuses.
Se viesses, eu venderia a lua a um estranho e um dia, chegaria muito perto e dir-te-ia ao ouvido que há uma menina que vive fugindo, porque roubou aos deuses um toque de midas. E quando morrer, ninguém saberá que caminhava no mundo com uma estrela de cinco pontas escondida nos cabelos. Mas tu haverias de saber.





Por Elisabete Albuquerque
Imagem de AAT