segunda-feira, 29 de novembro de 2010



POEMA À MÃE






No mais fundo de ti,

eu sei que traí, mãe!



Tudo porque já não sou

o retrato adormecido

no fundo dos teus olhos!



Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais!



Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.



Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura!



Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos...



Mas tu esqueceste muita coisa!

Esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!



Olha - queres ouvir-me? -,

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;



ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;



ainda oiço a tua voz:

"Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal..."



Mas - tu sabes! - a noite é enorme

e todo o meu corpo cresceu...



Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.



Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas...



Boa noite. Eu vou com as aves!






Por Eugénio de Andrade
Arte de Diego Rivera

domingo, 28 de novembro de 2010



Ontem, descobri um dos crimes mais assombrosos. Há um método rude para que o sabiá cante mais: furam-lhe os olhos. Aí, na triste e escura solidão de sua vida, o pássaro lapida e rumina sua partitura inata, a aditiva, e passa a cantar o tempo todo, mais e mais bonito.

Abaixo, eis o depoimento de uma avezinha pungida.





JAZZ LARANJEIRO






tudo belo aos olhos de

doce-de-flor-de-laranjeira



n` desjejum não m`alenta

geléia de borboletas



: me álacre era o céu-sol uma

distância de vôo percorrível



ora perambulo em passos-saltos

cúbicos: me tumula me berça

demolição de algazarra de

ciranda incinerada



me queimam me põem

estrepe arame nos olhos



ah há

quem me unte os olhos com bento cuspe?



por via escuríssima meu canto

sai labiríntico rude mas mais belo



: o céu-sol me

foi desaceso

– não me destila o sentir noite ou dia –



canto-peço-rezo

para alguém me devolvê-lo






Por Wilson Nanini
Ler mais poesia sua em http://wilsonnanini.blogspot.com/

sábado, 27 de novembro de 2010



QUINZE






Agora

que tenho quinze anos de novo

e a vida toda pela frente



Agora

que o tempo me respeita

e a luz desmaia quando te beijo



Agora

que eu menina

e tu conto



Agora

que te esqueço

se te vais



Agora

que tenho quinze

amor



Deixa-me esconder nos teus braços

só até passar a tormenta.






Por Paz Hernández Páramo
Tradução de Albino M. (http://ruadaspretas.blogspot.com/)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010



ZULMIRA, AO AMANHECER






No urinol público lia-se UTILIZAÇÃO GRATUITA.

Fiquei quase feliz (quantas coisas gratuitas

há neste mundozinho de horror?).

Mas o que desta manhã eu mais agradeço, Zulmira,

é a tua sopa, essa que tantas vezes

me salvou a vida, entre centenas de super bocks.



Não me inquietam os chulos, os assassinos

ou estes mendigos calados. Ilustríssima gente,

de uma má-raça inegável. Prefiro perder

com eles os meus dias, e falar da fome, dos joanetes

ou do preço do azeite. Não tenho tempo

para aprofundar desrazões, nem para conviver com puetas.



Sei apenas que as poucas pessoas que amei

estavam por detrás de um balcão

onde o álcool ardia, muito devagar.

Os meus pobres anjos.

Também por isso gostava de te obrigar a esta taberna,

exílio cantante de todas as minhas antigas manhãs.



Por esta mãe desolada, pelo rumor sombrio

do vinho que nunca azedou nos meus lábios,

por certas inábeis palavras que sobre os barris

faleceram e te pertenciam somente.



Mas «até logo, Zulmira», bem sabes que do amor

ou do futebol nada poderei jamais dizer

ou sentir. Entre os teus braços largos deponho

em silêncio aquela negra noite do meu mal.

Por uma sopa encorpada, sobre destroços

imperecíveis, bocados de morte partidos.






Por Manuel de Freitas

domingo, 21 de novembro de 2010



EXAME DE INGLÊS






Líamos Dylan Thomas para o teu exame de inglês,

mas não estava ali o teu exame, a severidade de uma aula,

a lição decisiva que era preciso temer.

Estava, sim, a colina dos fetos

com o seu sol tombando em rios de ouro palpável,

estava o sol sobre os declives

na sua sagrada fascinação de beijar

as crianças que acabavam de começar a andar.

Estavam as eiras de feno a partir das quais

segui o trilho das ervas altas

que me levou aos caminhos da minha infância.

Não havia ali nenhum mundo maciço,

antes uma substância núbil cobrindo o ar

na qual as minhas palavras se lançavam felizes

pelo seu som, pela sua cadência e cor.

Em voz alta Dylan Thomas para o teu exame de inglês,

juntos aprovámos esse regaço de luz verbal

comovida entre as folhas frescas dos fetos.






Por Roberto D. Malatesta
Tradução de Lp, Do Trapézio Sem Rede (http://arspoetica-lp.blogspot.com/)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010



A CIDADE E OS LIVROS


para D.Vanna Piraccini






O Rio parecia inesgotável

àquele adolescente que era eu.

Sozinho entrar no ônibus Castelo,

saltar no fim da linha, andar sem medo

no centro da cidade proibida,

em meio à multidão que nem notava

que eu não lhe pertencia - e de repente,

anônimo entre anônimos, notar

eufórico que sim, que pertencia

a ela, e ela a mim - , entrar em becos,

travessas, avenidas, galerias,

cinemas, livrarias: Leonardo

da Vinci Larga Rex Central Colombo

Marrecas Íris Meio-Dia Cosmos

Alfândega Cruzeiro Carioca

Marrocos Passos Civilização

Cavé Saara São José Rosário

Passeio Público Ouvidor Padrão

Vitória Lavradio Cinelândia:

lugares que antes eu nem conhecia

abriam-se em esquinas infinitas

de ruas doravante prolongáveis.






Por Antonio Cícero
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http://antoniocicero.blogspot.com/

terça-feira, 16 de novembro de 2010



FOGO AZUL






Desanoitecendo…



De tua secreta busca

sou as páginas dobradas.

De tuas marés,

o rio que se curva.



Silêncio na mão da noite,

de tua boca, sob tambores,

acordo meus olhos.



Silêncio na mão da noite,

sonhas e me oceano

- Poesia Mulher -

fogo azul, sangro…






Por Carmen Silvia Presotto
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sábado, 13 de novembro de 2010



PROJECTO DE SUCESSÃO






Continuar aos saltos até ultrapassar a lua

continuar deitado até se destruir a cama

permanecer de pé até a polícia vir

permanecer sentado até que o pai morra



Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária

amar continuamente a posição vertical

e continuamente fazer ângulos rectos



Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora

por-se nu em casa até a escultora dar o sexo

fazer gestos no café para espantar a clientela

pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia

contas histórias obscenas uma noite em família

narrar um crime perfeito a um adolescente loiro

beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina

deixar fumar um cigarro só até meio

Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias

beber-se por um copo de oiro e sonharem-se as Índias.






Por António Maria Lisboa
Arte de Cruzeiro Seixas


CANTIGA PARA NÃO MORRER






Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.



Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.



Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.



E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento.






Por Ferreira Gullar
Fotografia de Mary Carson

sexta-feira, 12 de novembro de 2010



DE TARDE






Naquele "pic-nic" de burguesas,

Houve uma cousa simplesmente bela,

E que, sem ter história nem grandezas,

Em todo o caso dava uma aguarela.



Foi quando tu, descendo do burrico,

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzoal azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.



Pouco depois, em cima duns penhascos,

Nós acampámos, inda o sol se via;

E houve talhadas de melão, damascos,

E pão-de-ló molhado em malvasia.



Mas, todo púrpuro, a sair da renda

Dos teus dois seios como duas rolas,

Era o supremo encanto da merenda

O ramalhete rubro das papoulas!






Por Cesário Verde
Arte de Monet

domingo, 7 de novembro de 2010



O QUE HÁ EM MIM É SOBRETUDO CANSAÇO






O que há em mim é sobretudo cansaço

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.



A subtileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto alguém.

Essas coisas todas -

Essas e o que faz falta nelas eternamente -;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.



Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada -

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...



E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço.

Íssimo, íssimo, íssimo,

Cansaço...






Por Álvaro de Campos
imagem por AAT sobre quadro de Almada Negreiros


A ERVA DIZEM VOCÊS...





A erva dizem vocês

Não faz qualquer barulho a despontar

A criança a crescer

O tempo a passar

Não têm o ouvido verdadeiramente apurado vocês.






Por Pierre Albert-Birot
Tradução de Lp, Do Trapézio Sem Rede (
http://arspoetica-lp.blogspot.com/)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010



PLATÔNICO






Por que só agora

e não antes?

Há muito

seríamos amantes.

Felizes, talvez,

desde outrora.

E por que não o fez?

Por que só agora?



Que espécie de amor

é essa,

a viver desprovida

de pressa?

É amor que aguarda

retorno

ou que apenas se guarda,

como se morno?



Por que só agora

e não antes?

Temia

que nos fizesse distantes?

O que se perde de vida

a cada hora...

Pretendia dizer-me algum dia.

Pois me diga: por que só agora?






Por Renata de Aragão Lopes
Ler mais poesia sua em http://docedelira.blogspot.com/